Capítulo 09

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- Selena

O apito agudo da chaleira avisa que a água entrou no ponto de ebulição, me arrancando dos devaneios enquanto encaro o celular que repousa sobre a pequena ilha que separa a cozinha da sala. Suspiro e deixo-me escorregar da banqueta alta e desligo o fogo. Despejo um pouco da água numa xícara de chá e o restante em uma bacia, onde descansa o vestido manchado.

Enquanto preparo a mistura milagrosa para tirar todo e qualquer resquício do vermelho que estampa a peça, ouço uma notificação vinda do aparelho alheio. Minha atenção é atraída como ímã, mas hesito. Uma inquietação toma conta de mim.

O peso daquele pequeno objeto no bolso do vestido me acompanhou a noite toda, como se fosse para me lembrar o quão pesado eram as imagens e outras informações que ali estavam armazenadas. Eu sabia que aquilo me assombraria e me afetaria profundamente, mas eu precisava extrair dali tudo o que poderia.

Caminho até o aparelho e a tela pisca com uma nova mensagem. A foto de Jackson ao fundo da tela de bloqueio me encara. Como eu já havia descoberto a senha, que, obviamente, é a data de aniversário do cantor, desbloqueio o acesso e abro o aplicativo de conversa. São mensagens de um grupo de fãs que discutia banalidades, uma nova música, algo sem importância. Não era o que me interessava, então tomo coragem e abro o aplicativo de fotos.

Me limito a olhar somente os registros daquela tarde, pois, apesar de achar que estava preparada para ver o trabalho da garota da janela, sinto um gosto amargo no fundo da garganta ao abrir a primeira foto. Sabe o constrangimento de abrir a porta destrancada de um banheiro e se deparar com alguém lá dentro? Era excruciante demais. O pior de tudo era que a pessoa não tinha como se esconder, pois sequer sabia que estava sendo observada.

Começo a arrastar o dedo ansiosamente, alternando as fotos. Os registros são todos de cima, relatando Jackson se trocando e penteando o próprio cabelo. Por sorte dele, a garota parecia ter chegado após ele vestir uma calça, não mostrando nada além do seu tronco tatuado e definido. Tudo isso já estava estampado em capas de revistas e nas redes sociais, mas o fato de ele não saber que estava sendo observado, isso, sim, fazia meu estômago revirar. A linha tênue entre o público e o privado era rompida de forma brutal.

Fecho os olhos por um momento, respirando fundo. Era errado. Eu sabia. Cada fibra do meu ser grita para que eu apagasse tudo, destruísse o celular, desistisse de todo esse projeto e jamais olhasse para trás. Mas isso não me levaria a lugar nenhum. Para expor aquelas garotas, eu precisava jogar o mesmo jogo sujo que elas. Com dedos hesitantes, seleciono as fotos que revelavam o mínimo possível do tronco tatuado e do rosto de Jackson, partes que já foram exibidas tantas vezes nas redes sociais, mas que agora vinham desprovidas de uma coisa crucial: o consentimento.

Minhas mãos estavam frias enquanto eu transferia os arquivos para o computador e começava a editar. Suavizo as fotos, borrando detalhes, mascarando a nitidez. Não importa o quanto eu tentasse justificar, aquela linha havia sido cruzada. Afasto meu senso ético e tolerante ao enviar o e-mail, sentindo um peso no peito. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.

Minha noite se estende por mais alguns bons minutos após desligar meu computador. Deitada na cama, já com o vestido novamente branco estendido lá fora, a xícara de chá vazia e as luzes apagadas, fecho os meus olhos e não vejo quando uma nova notificação acende na tela do celular furtado.

Eu durmo tranquila, sem saber que o verdadeiro pesadelo começará na manhã seguinte.

(...)

O ônibus que me leva para o trabalho está na metade do caminho quando recebo uma mensagem da Sra. Nabi perguntando onde estou. Respondo que perdi a hora e tive que sair correndo de casa, mas que logo estaria chegando. Aproveito e pergunto o motivo do questionamento. Ela responde:

Sob a Lente [atualizando]Onde histórias criam vida. Descubra agora