03 de Fevereiro de 2020.

4 0 0
                                    

É uma noite chuvosa, dizem as superstições populares que a chuva forte cai quando o inesperado ocorre, nem sempre o inesperado, mas também o impressionante. Se de fato assim acontece, creio que a chuva de hoje seja pelo nosso encontro, sim, falo d'Ela, aquela que a uns quatro ou cinco anos me aprisionou com os grilhões do amor e se foi levando as chaves. Havíamos nos visto na parte da manhã, entretanto, com celeridade, aquele tipo que não permite detalhes, estávamos atrasados para o trabalho. Nos encontramos em frente a um shopping, estávamos à espera de um ônibus um pouco mais confortável e rápido.

Não consigo cessar de observá-la, seus lábios, seus profundos olhos negros que quando tocados pela luz do sol tomam a tonalidade de um carvalho amarronzado. E Ela? Ela bem sabe que observo, normalmente consigo com apenas um olhar saber com certa precisão o que alguém está pensando, suas pretensões e tramas; Ela porém é indecifrável, um mistério que nem o próprio Sherlock resolveria. Eu nessa agonia e inquietação. E Ela? Sorri, sorri com a mais branda naturalidade, Ela sorri.

Descemos do ônibus e paramos no ponto onde logo logo iremos nos separar, a chuva se fortalece, nos abrigamos debaixo de uma cobertura improvisada na espera de sua van, que graças a Deus não chegou. Trocamos risadas, brincadeiras e recordações, até que... toco seu rosto. Ela pergunta:

- Por que seus olhos estão tão fixados em mim? Não cessa de me olhar um segundo sequer.

Me recomponho da forma que posso e procuro bancar o homem sério.

- Não sei do que está falando.

Ela me encara e aproxima seu rosto do meu, sinto o coração acelerar, meu Deus terei um ataque cardíaco! Meu corpo treme, mas ainda sim consigo manter o controle e parar. Naquele momento sou tomado por incontáveis risos, minha alegria não podia ser ofuscada, procuro ficar sério, repasso a situação atual em minha mente e exclamo:

- Meu Deus! Eu sou um imbecil mesmo!

Ela sorri.

- Por que disse isso?

Fico em silêncio, ela também se silencia, só ouço a queda da chuva e o assovio do vento, neste curto período de silêncio ensurdecedor penso nas mais variadas coisas, eis algumas:

1- Como pode depois de tantos anos eu ainda reagir assim a sua presença?

2- Estou sendo um idiota.

3- "O primeiro dever de um homem apaixonado é portar-se como um idiota."

4- Esse momento precisa acabar?

5- O que ela está pensando?

Sua voz vem como o fio de uma katana e corta minhas divagações:

- O que você tanto pensa?

Não é possível, só pode ser um teste, uma prova que não tem notas, a avaliação se dá com os sentimentos naquele instante, como algo efêmero, mas este momento estava longe de ser isso, vou implodir, não aguento mais.

Uso o aplicativo da 99, chamo um carro para levá-la até em casa, serão nossos últimos momentos juntos neste dia e consegui estragar tudo, no carro posso tentar algo. Nos sentamos no banco de trás, porém, o motorista é um tagarela, estragou tudo. Só esboço descontentamento com aquela situação, respiro fundo.

- Você está bem? Não gosta de conversar com os motoristas?

Balanço a cabeça sinalizando que não, ao longe já consigo ver sua casa, ela vai descer logo logo. Olho atentamente para ela uma última vez naquela noite, infelizmente nós chegamos. Ela se despede e se inclina para beijar minha bochecha esquerda e direita como todo bom carioca, mas eu sou desengonçado, me viro muito pouco e acabo afanando um beijo seu, rápido, inesperado, molhado e doce. Nos olhamos por três segundos que pareciam três séculos, ela se vai. E eu? eu caí, caí como o corpo morto cai.

Diário de um Homem ComumOnde histórias criam vida. Descubra agora