TENDER

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Se me perguntassem sobre ele, eu diria que Harry se achava invencível. Daria para encher uma cidade inteira só com o seu ego.

Ainda trabalhava como segurança, meu segundo emprego na época, em um pequeno clube na West Village quando o vi pela primeira vez.

Eu estava prestes a ligar o carro, até que esse garoto, esguio, muito pálido, com seus olhos verdes enormes e mortiços, se debruçou na minha janela de repente.

"Poderia me levar ao metrô mais próximo?", a despeito da voz profunda, os traços marcantes, o cabelo curto com um aspecto molhado pelo gel, tudo nele era delicado, de uma pureza ensaiada quase perturbadora. Havia também um certo tipo de insolência febril no olhar, como se estivesse me desafiando. "Desculpe, não quis assustá-lo. Sou novo aqui. Estava numa festa com uns amigos, mas eles foram embora sem mim e fiquei um pouco perdido."

Recém saído de um turno de 12 horas e louco por um bom banho quente, aquilo me pareceu decentemente crível para deixá-lo entrar.

Virando a esquina, com ele em meu encalço no banco carona, não consegui evitar a curiosidade. Ele era jovem demais. Tinha uma beleza peculiar, profusa. Usava um grosseiro par de botas militares, meias arrastão e um vestido — um vestido acima dos joelhos, com flores bem miúdas, quase imperceptíveis, derramadas por todo o tecido preto, como o das garotas anêmicas que cruzavam as ruazinhas do Soho em seus saltos, transparente o bastante para que eu enxergasse através dele o torso magro enrolado em gaze cirúrgica, manchada com sangue.

Tornei a me concentrar na estrada, ligeiramente assombrado pela ideia de estar metido numa encrenca.

"Me chamo Harry."

Apertei o volante com força, "Louis."

Vi seu sorriso pelo retrovisor. Ele irradiava um charme travesso, tímido e desarranjado, não inspirava nenhuma ameaça. "Se importa se eu fumar, Louis?"

"À vontade."

Ao chegarmos na entrada da estação, Harry não disfarçou seu olhar frustrado. Eu não entendi. Abri a porta para ele.

"Não quer ir pro hospital?", a minha boca se moveu sem a minha permissão. Eu tremia por dentro. "Isso está bem ruim. Posso acompanhá-lo."

Ele se ergueu.

De pé na minha frente, me acariciou a bochecha com o polegar num toque suave, rindo. "Você é um docinho, sabia?"

E então saiu andando.

Semanas mais tarde, com a memória dele adormecida o suficiente para que eu ficasse tonto com sua presença ali, contemplei Harry novamente em suas botas militares, mas dessa vez vestido num longo sobretudo escuro de gabardine, terno cinza e gravata, abordando um outro cara, noutro carro, com o mesmo papo furado e fui atingido pela súbita consciência de que ele era, na verdade, um garoto de programa. E eu, um imbecil completo.

Passei a evitar aquele trajeto. Eu era um covarde.

Meus olhos, embora, procuravam por ele aonde quer que fossem.

Para o meu deleite pessoal, havia inúmeras versões de Harry, ele carregava todas em uma mala de mão como a próxima estrela de Andy Warhol — figurinos impecáveis, com prazos de validade, meticulosamente articulados segundo a clientela, mocinho distraído com olhos de gazela para os fundamentalmente reservados, mas ainda assim predatórios; puta fria e cruel numa minissaia prateada para os mais pervertidos, que ansiavam por sua subjugação descartável; qualquer coisa. Era como se as ruas, os becos, os quartos de motel, fossem o seu palco. E, bem, Harry sabia como fazer um bom show.

Fui capaz de manter uma distância confortável. No entanto, nessa madrugada em particular, sucumbi ao egoísmo do meu fascínio.

Harry estava curvado na calçada, com sangue escorrendo pelas narinas, a face contraída em dor enquanto chorava — as lágrimas se juntavam ao sangue, sujando o blusão de lã. Ele parecia tão miserável que eu absolutamente odiei cada segundo daquilo.

"Não! Não olhe pra mim — por favor."

"Por que?"

"Não estou bonito agora."

Arranquei um lenço do bolso e comecei a limpar seu rosto com cuidado, "Você sempre está."

"Gostou da minha roupa?"

"Lilás é a sua cor."

Ele sorriu, satisfeito com a resposta. Um pequeno milagre. Não era exagero dizer que subitamente senti uma grande tranquilidade.

Levaram todo o dinheiro de Harry. Quis socar a minha própria cara por não estar por perto. Eu andava com uma arma por um motivo.

Ele precisava de algum descanso após o acontecido, então ofereci minha cama.

Fiquei no sofá, encarando o teto com uma edição já amarelada nas bordas de On The Road de Jack Kerouac nas mãos.

Um corpo cobriu o meu, num aperto forte, mas gentil.

"Não quero ficar sozinho", escutei ele dizer. "Leia para mim."

Me ajeitei no espaço estreito, com Harry aninhado no meu peito, trêmulo e fragilizado sob a meia-luz que vinha da janela. Eu não tinha grana para cortinas.

"Com a vinda de Dean Moriarty começa a parte da minha vida que se pode chamar de vida na estrada. Antes disso eu tinha sonhado muitas vezes em ir para o Oeste conhecer o país, mas..."

Ele dormiu na terceira parte.

Aos poucos, isso passou a ser o nosso ritual.

Era comum sair de um turno maçante no clube já no despontar do dia e encontrá-lo recostado no capô do carro — um Maverick vermelho que ganhei do meu velho quando decidi me mandar de casa, o rádio nunca funcionava direito e uma das portas só se fechava com um segredo —, esperando por mim, acendendo um cigarro no outro. Às vezes, Harry me recebia com alguma história bizarra na ponta língua (o cara que curtia pintar as unhas dos pés dele, a senhora que o chamava pelo nome do falecido, o policial que pedia para apanhar com o próprio cassetete...). Noutras, ele ficava em silêncio, uma mariposa debatendo-se dentro do casulo. Depois, era como se abandonasse seu corpo por algum tempo e qualquer tentativa de sustentar uma conversa a partir dali era um fracasso. Eu não insistia.

"Quando era criança, me imaginava morando numa cabana de madeira no pé de uma montanha. Eu ia a cavalo para a cidade, um cavalo marrom e branco", Harry contou enquanto encarava o vidro. Chovia muito naquela noite. Ele se assustava com os trovões. "Minha mãe amava cavalos."

"Por que está me contando isso?"

"Tenho medo de esquecer quem eu sou, falar em voz alta ajuda a lembrar."

Foi assim que descobri que Harry gostava dos Beatles. Ele ia no bar só para enfiar uma moeda no jukebox e ficar ouvindo "Eleanor Rigby". Naturalmente, eu comprei um toca discos na semana seguinte. Também o levei ao cinema quando ele deixou escapar que era louco pelo Godart. François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohmer. Pão de mel, o nascer do sol, luvas de couro, o cheiro da gasolina e chá com leite.

Nunca pensei nele como algo a ser cogitado à luz do dia até vê-lo nos preparando um almoço. Doméstico. Um disco do The Velvet Underground que Harry arranjou numa loja de usados. Ele me olhou com um propósito nos olhos e nós fizemos amor ali mesmo, na cozinha, contra o balcão.

Eventualmente, acabei me apaixonando, o que para ele, era um problema. E isso nos levou à nossa primeira desavença séria. Nós não fomos os mesmos. Eu jamais pediria desculpas por amá-lo. Havia um clima de paranóia, vago e inquietante. Os vestígios de Harry foram sumindo do meu apartamento até que não restasse mais nada.

Antes de deixar a cidade, ele me escreveu um bilhete.

Querido Louis,

Espero que um dia nós possamos perdoar um ao outro por não ser o que queríamos que o outro fosse.

SUICIDET91: ONE-SHOTSOnde histórias criam vida. Descubra agora