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Um admirável mundo novo surgirá

Se não agirmos de acordo com suas mentiras

Não segure mais suas línguas

Aprenda com todos aqueles que vieram antes de nós

Kalendra - Brave New World

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A morte é algo óbvio, mas esse fato não alivia o desconforto que ela causa. Afinal, nada no mundo faz mais sentido que a afirmação de que aquilo que está vivo, irá morrer.

Seu corpo um dia servirá de alimento para os mexilhões do fundo do mar.

Quando a mulher viu o corpo do próprio pai ser jogado sobre a balaustrada do navio, enrolado numa mortalha sem personalidade, imaginou a si mesma. Era ela enrolada naquele mesmo pano, numa cerimônia com tripulantes do seu navio. Compreendeu, nessa imagem, que a morte era uma velha conhecida, uma parente distante que estava ligada a ela por sangue e pelo destino. Nessa certeza, sentiu-se por um momento, mais leve.

Um homem pronunciava palavras bonitas enquanto ela ainda observava o corpo do pai afundar.

— Johannes Schöpfer, Corsário da...

— É um grande desgraçado, não é? Fazer a gente arriar a escota só para satisfazer seu desejo póstumo. Que desperdício.

— Maree, tenha piedade. Papai está morto.

A mulher chamada Maree encarou o irmão ao seu lado, quem teve a decência de pelo menos umedecer os olhos, ao contrário dela.

— Alçar velas para um morto. Isso é mau presságio.

— Não é um morto, é o nosso pai.

— Morto.

O pastor que lia a bíblia em voz alta levantou os olhos para os dois, num sinal de repreenda e Maree apanhou o lenço e o enfiou no rosto, assoando falsamente o nariz.

— Continue, reverendo. — O irmão acenou.

— Já acabei, Capitão Schöpfer. Talvez seja seu momento de dizer algumas palavras em memória ao seu pai.

Maree observou o irmão dar um passo para frente, segurando o chapéu no meio do peito e com os cabelos escuros encaracolados esvoaçando, selvagens como ele próprio.

A tripulação estava na proa, cercados por uma massa de marinheiros que serviram ao pai de Maree e que lamentavam a morte do antigo capitão.

A mulher ouviu o irmão falar, enquanto observava os rostos dos homens que conhecia desde criança. O imediato, um homem magro e alto chorava copiosamente, ficando com o nariz vermelho e molhado. Maree cogitou ir até ele e o abraçar.

— Mesmo com a morte de meu pai, a Companhia de Transportes Schöpfer continuará de vento em popa sob meu comando.

Maree ergueu o rosto.

— Irei liderar a esquadra para as Índias ao lado minha irmã, Maree Schöpfer, em breve, Maree Altagracia.

Ela deu um passo à frente.

Fez-se um silêncio amargo de expectativa, com olhos injetados esperando por uma palavra, o som dos marinheiros mascando fumo e a silenciosa repulsa do reverendo ao ver uma mulher nada discreta. Maree olhou todos aqueles homens nos olhos e quando viu o imediato sorrir na direção dela, ela sorriu de volta.

— Nosso pai foi um dos corsários treinados pela academia de Francis Drake. Lutou bravamente nas costas da América e distribuiu amigos em portos e a confiança de homens nos sete mares. Ele deixou para meu irmão e eu a frente de seu negócio, mas deixou também a luta pela nossa causa, a liberdade. Continuaremos lutando para que homens - e mulheres - possam ascender na sociedade, desde que trabalhem duro e nunca deixem de sonhar. A Companhia Schöpfer de Transportes nas Índias Orientais, filial do governo holandês e representantes do Rei continuará crescendo sólida e fiel às leis marítimas internacionais.

Nas Marés do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora