Uma carta esquecida

63 5 1
                                    


"Queridas crianças,

Quando lerem isso, eu provavelmente já terei partido a muitos e muitos anos. Estou sendo otimista, é claro, supondo que algum de vocês irá encontrar essa carta no meio das minhas coisas, supondo que minha casa não foi saqueada e tudo foi queimado, supondo que Danielle realmente cumpriu o que disse e cuidou de tudo que era meu.

Supondo que nada disso aconteceu e que todos estão aqui agora, existem coisas que eu preciso contar.

Não sei como explicar sobre a grande queda dos governantes, quando o castelo deixou seu posto acima de nossa terra e baixou até o centro da cidade. Não posso explicar, não há como os explicar. Talvez eu possa dizer que no fundo sabíamos que era inevitável, não a princesa, ela era inocente e até hoje talvez seja um pouco, porque não contei tudo a ela, mas seus pais sabiam, me deixaram a postos, me deixaram pronto e sob seus treinos para que quando aquele momento chegasse, não houvessem mais perdas além das que já aconteceram.

Eu ainda me lembro, o rei e a rainha dos glidérios, suas asas brancas e douradas erguidas e abertas em toda sua envergadura, a rainha deu o primeiro passo, desarmada, o peito aberto, nada além da coragem. Me lembro bem do rei dizendo para Danielle fugir para seu quarto. Eu corri atrás dela, me portei a sua frente. Talvez seja aqui que a imagem que vocês tenham de mim seja destruída, porque eu estava com medo, eu estava apavorado, todas as criaturas que eu prometi que jamais alcançariam vocês estavam bem ali, na minha frente. Com a princesa atrás de mim e os cadáveres atrás deles, eu havia prometido que a protegeria, que os protegeria, e eu fiz o meu máximo, o meu possível, e eu cumpri a minha promessa.

Mas eu não sei no que aquilo me tornou ou o que despertou em mim.

Eu já não ouvia A Voz a muito tempo, crianças. Tanto que naqueles dias, eu já a considerava uma ilusão de uma mente infantil e perturbada, mas ele esteve lá de novo, e daquela vez, eu teria que lidar com ela sozinha, tanto quanto Danielle teve que lidar nos próximos anos, com um povo quebrado, um castelo ensaguentado, e apenas fantasmas ao seu redor.

Eu achei que as coisas melhorariam.

Eu achei que os anos depois que tudo se estabilizou seriam as únicas coisas que eu teria que me preocupar. Um futuro esquadrão para treinar, uma casa para cuidar, ver o meu menino crescer e tirar dele todas as coisas que jogaram em seus ombros, ele era uma criança, todos vocês eram, e quando cada um de vocês foi chegando, meus deuses, a alegria que eu sentia a cada rosto novo, eu imaginava em como iria acender uma fogueira de aniversário para cada um.

Eu me esqueci do quanto isso estava longe do meu alcance.

Esqueci como tudo estava sempre longe e escorrendo pelos meus dedos.

Eu perdi ela.

Eu perdi ele.

Eu perdi vocês.

Eu troquei minha vida por uma outra e então tive que partir.

Troquei, eu sei que não salvei. Sei que agora, depois de todos esses anos, que se o príncipe ainda estiver vivo, ele está fadado a uma vida de condenação se tudo que ocorreu naquela noite tiver sido descoberto.

Espero que meu protetor tenha conseguido salvá-lo.

Espero que ele esteja bem.

Espero que ele não me despreze.

Milo — me perdoem os outros, Milo provavelmente irá entender essa parte melhor — caso consiga vê-lo, encontrá-lo, pode perguntar isso por mim? Talvez eu não esteja aqui para escutar, eu provavelmente não estarei nunca mais. Mas queime a mensagem como sempre fizemos para a tia Kate, de algum jeito, eu sei que vou ouvir.

Eu preciso ir.

Não peço desculpas, não sei se serão capazes de me perdoar algum dia.

Eu espero que sim.

Nunca esquecerei vocês.

Que o Sol abençõe os seus futuros e que a Lua guie os seus caminhos.

Que cada estrela do céu ilumine cada um de vocês.

Para todas as minhas Estrelas,

Neil."

Melodia do OceanoOnde histórias criam vida. Descubra agora