Eu mal conseguia me manter de pé enquanto corria pelas ruas do centro, tropeçando na barra do vestido alugado com o dinheiro suado de mais de três meses que estava economizando. Aquilo não podia ser verdade, os burgueses gostam de falar mais do que as próprias línguas permitiam, gostam de fofocar como se fosse a única coisa que lhes dava sentido para viver. Mas eu conhecia meu pai, conhecia a capacidade que ele tinha de machucar as pessoas, então tudo que me restava era rezar para que não passasse de um mal-entendido.
Tudo ao me redor foi aos poucos perdendo o brilho luxuoso conforme ia me afastando da parte rica de Londres, sendo substituído por um cheiro forte de fumaça que saíam das fábricas. Não me lembro em qual momento tinha perdido as pulseiras de pérola ou quando minha saia havia sido rasgada sutilmente na parte lateral da coxa, mas me lembro vividamente do gosto amargo em minha boca e de como meus olhos ardiam — era muita fumaça, até mais do que deveria ter naquela noite.— Fogo! Fogo! Ajudem as crianças! — Foi a última coisa que escutei antes de meu mundo cair no mais profundo e melancólico silêncio. Minha casa, a casa onde eu havia deixado minha família dormindo tão tranquilamente antes de me esgueirar para fora mais uma vez, engolida pelas chamas que cegavam, que machucavam a pele. Maldito... Maldito... Porco asqueroso. Os boatos haviam se espalhado tão rápido como o fogo; "O bêbado Magnus, Magnus Taylor! Soube o que fez? Botou fogo na casa onde a mulher e os filhos moram! Magnus! O Senador!"
Me forcei rapidamente para fora daquele transe de culpa e terror, precisava achar meus irmãos e minha mãe no meio daquela multidão que se formava ao redor da polícia, tentando ao máximo conter o fogaréu. — William! Tom! — Minha voz saía rouca enquanto minha garganta era arranhada pela fumaça, e à medida que a casa parecia sucumbir e a madeira estalava, minha mente era um malabarismo entre a razão e a emoção, empurrando meu corpo em meio as pessoas. — Harry! Mamãe!
— Emma! — Como uma mão me puxando de volta daquela euforia, ouvi a voz abafada de Harry, meu irmão mais novo, um pouco mais à frente. Corri o quanto aquele inconveniente vestido me permitia, meus cabelos já soltos do penteado que havia passado horas para finalizar na frente da penteadeira de minha mãe.
Não consegui não pensar em como o delicado móvel deveria ter sido vaporizado em menos de segundos no andar de cima.
Harry estava agachado perto de alguns de nossos vizinhos, em seus braços, Rosemary, minha irmã mais nova, chorava e berrava com toda a força em seu pequeno pulmão. — Ah! graças ao bom Deus vocês estão aqui... — Sussurrei mais como um conforto para mim mesma do que para qualquer um ouvindo. — Onde estão os outros, Harry? Onde estão Oliver, Will, Tom... Mamãe?— Tom entrou de novo! Foi buscar eles!
— Entrou?! — Protestei, tendo tempo de me virar apenas para dar alguns passos na direção da casa. Fui jogada para trás pelo instinto, escapando por pouco de uma onda de calor intensa. O segundo andar havia colapsado.
Eu gritei. Um grito tão alto e dolorido que sentia corroer meus ossos. A casa estava quase completamente sucumbida ao fogo — não tinha como haver sobreviventes. Me ajoelhei no chão, tremendo e soluçando, paralisada pelo medo. Como deixei aquilo acontecer? Como deixei que ele entrasse na nossa casa? Maldito... Maldito... Ele queimou a casa, ele matou minha mãe e meus irmãos, ele sabia que eu estaria fora. Senti o calor me fazendo suar debaixo de camadas de roupa, sentia a raiva esmagando meu peito; eu permiti que aquilo acontecesse."Deixe-os queimar. Deixe que tirem o peso de seus ombros"
Olhei para dentro dos escombros e chamas, no meio de duas pilastras se cruzando no que uma vez foi nossa sala de jantar, e eu vi. Eu reconheci o desprezo, o vazio, o monstro que vazava daquele rosto. Magnus, e abaixo de seus pés, os corpos empilhados de sua família, mortos, desespero e horror estampados em suas faces. Porco... Porco... Asqueroso... Assassino.
Meu corpo não tremeu quando o segui para dentro das cores vibrantes e quentes. Eu o caçaria, caçaria até que devolvesse cada gota de sangue que tirou de quem eu amo.
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O Projeto Yule | Volume 1
Misteri / Thriller"Eu assisti enquanto as chamas dançavam mais uma vez na frente de meus olhos. Naquele momento soube, o pesadelo só havia começado." ──────────── SINOPSE DENTRO DO LIVRO. Primeiro livro da série "O Projeto Yule", baseada em uma campanha RPG jogada po...