Era a coisa mais antiga que tinha em sua memória. Não era uma lembrança, pois, embora tivesse sido testemunha de tudo o que se passara, era jovem demais para discernir alguma coisa na ocasião. A vivacidade dos fatos guardados na mente era explicável, sua mãe e sua tia lhe contaram a história um sem número de vezes, a cada narração imiscuindo um detalhe ou dois, a ponto de gravar nele todo o desenlace. Eram as memórias delas que ele juntara para a criação de uma cena nova. Os mesmos personagens, diálogos e intercorrência.
Tudo imaginado.
Principalmente a dor. A dor, claro, também era outra, apenas contada, dita, muito distante da que fustigara a mãe sete meses após sua concepção. Nunca passaria por nada semelhante em toda sua vida, nem mesmo no dia de sua morte. Talvez a tenha sentido na alma nos anos perdidos de sua adolescência, uma angústia acre que lhe surgiu quando os reais contornos do mundo finalmente assomaramem sua consciência. Ainda assim, não era algo físico, mas uma letargia que lhe tolheu as forças, que minou sua Vontade fazendo com que o sopro vital lhe parecesse faltar. Mas as duas dores se davam pela perda. Era uma parte de si que partia, que lhes era roubada. Apenas neste sentido, eram similares. No caso dele, foi o sacrifício da inocência ainda no fim da infância. No caso dela, deu-se pois ela resistia a ceder, como se recusasse a aceitar aquela separação, a perda daquele pedaço de carne, agora um nascituro, que lhe saía do útero com um arroubo de força formidável. A criança era uma explosão de vida que lhe rompia as estranhas, forçando seu caminho prematuramente a um mundo que não desejava as marcas de seus passos em sua superfície e que, sobretudo, não precisava de mais um ser humano respirando.
Aquele dia marcava o começo da contenda entre ele e a Realidade, uma luta que se estenderia pela exata duração de sua vida.
O garoto ouviu aquela história tantas e tantas vezes que a gravou detalhadamente em meio às demais lembranças que ocupariam sua mente. Chegava mesmo a contá-la melhor que as demais testemunhas presentes naquele dia. Tal construção era de tal forma rígida que, fosse sua consciência uma casa, ela ocuparia um cômodo próprio. De fato, ele a visitava como a um quarto. Nos momentos mais difíceis da sua vida, escondia-se ali, naquela cena estática, que avançaria ou retrocederia obedecendo aos caprichos de sua vontade. Buscava nela um alento que nunca encontraria no mundo real, embora não soubesse exatamente o motivo.
Às vezes, e as pessoas lhe chamavam a atenção sobre isto, parecia viver em um mundo à parte, só seu.
Sua mãe estava deitada na própria cama. Ainda era uma jovem de pouco mais de vinte anos, sua pele era de um marrom escuro, seus músculos eram hígidos, as pernas muito compridas, o quadril largo. Estava nua ou quase. Vestira uma camisola, que agora cobria apenas um pedaço de seu ventre, pois ela a soltara nos ombros por causa do calor e a levantara na barra para o início dos trabalhos. Seu abdômen estava imenso, dilatado com a presença da criatura que gestava ao longo de trinta e três semanas. Os cabelos crespos caíam-lhe sobre o rosto, fugindo arredios dos grampos que tentaram conter-lhes. Os olhos estavam fechados e os lábios grossos abertos em uma careta de dor. O fruto de seu ventre parecia contorcer-se em sua saída para a luz, ignorante ou indiferente às dores que provocava. Ela estava deitada, apoiando-se nos cotovelos, os dedos agarrados ao lençol amarelado. Arfava, buscando no ar o sopro de vida que, supostamente, passaria ao filho.
Diante dela, uma segunda mulher. Os cabelos grisalhos estavam presos por um lenço branco no topo da cabeça. Era mais baixa que a moça deitada. Seu corpo era mais robusto, troncudo, e contrastava com seus olhos castanhos claros que revelavam uma delicadeza rara. Estava ajoelhada, a saia prensada pelo tornozelo. Segurava um pano encharcado. Suas mãos ásperas tinham uma vida escrita em cada calo.
A senhora metia o pano em um balde de água quente, retirava-o e o torcia com habilidade, retirando o excesso de umidade e, então, limpava a virilha da outra. A dilatação partira sua pele. Seu filho a fazia sangrar.
-Força, amadê- falava com ternura- Força pro seu filho nascê.
Havia mais duas pessoas na casa, um garoto escondido no quarto vizinho, cujo travesseiro miúdo abafava os ruídos exteriores; e uma mulher, a irmã do falecido marido de Rita. Ela não gostava da cunhada, mas gostava menos ainda da ideia de que algo lhe acontecesse, sobrando para si a responsabilidade pela criação do sobrinho. Fora ela quem primeiro acudira a jovem no início do trabalho de parto, correndo a chamar a parteira do outro lado do bairro. Agora, fazia as vezes de enfermeira, contrariada, fervendo água, lavando panos, imaginando a bagunça que restaria e quem teria de arcar com ela.
A parteira dedicada alternava apelos de motivação à parturiente com uma cantiga quase resmungada, da língua de seus antepassados, da qual ela conhecia muito pouco. Era uma forma transformada pelo tempo e pelos falantes, que a usavam com tanta liberdade que fariam um gramático suar frio. A música era um zumbido tranquilizador, uma espécie de ronronar humano, mas não menos harmonioso. Era algo que lhe fora ensinado por sua mãe junto com a profissão e com todas as preliminares lições que tivera sobre a vida e seu papel nela.
A cabeça arroxeada da criança surgiu e foi tomando forma ao mesmo tempo em que a respiração da mãe se tornava mais desesperada. Uma pontada de dor se estendeu tempo suficiente para lhe enlouquecer. Tinha a impressão de estar sendo rasgada ao meio.
A parteira dedicada, já com a criança fora da mãe, embalhou-o em uma toalha seca. Entregou-o à Rita como o que era, um troféu. Uma vitória. Tinha o peito estufado de orgulho. Silenciosamente, fazia uma oração a seus guias e orixás. Sabia que não estava sozinha e que a conquista não era somente sua, mas de todas as presenças invisíveis que lhe auxiliaram.
-Ele é tão pequeno – a cunhada falou- será que vai viver?
A parteira olhou-a com censura.
-Claro que vai, Dodô. O menino é forte. Tem saúde. Não viu a pressa para nascer?
-Ele é mesmo muito pequeno, Iaiá- Rita falou, segurando o menino com braços inseguros.
-Ele precisa de cuidados. Tem que ir pro hospital logo.
Rita engoliu seco, o coração batendo acelerado em meio à confusão de sentimentos. Aquela criança tinha para ela tantos significados diferentes. O pior deles era fruto do abandono, lembrava-se com amargura do homem que saíra de sua vida pela porta de sua casa, que nunca se preocupara em saber dela ou da vida que pusera em seu ventre. Mas o pequeno era cria de sua carne, sentia que deveria amá-lo como já amava o outro. Pensou por um segundo que seu primeiro filho era produto do amor e este do pecado. Por isso as dores, por isso as complicações: uma espécie de castigo. Tais ideias não eram completamente suas, mas lhes foram oferecidas de graça e, não afastadas a tempo, começavam a render frutos que lhe assombrariam por toda a vida.
Duas lágrimas correram por seu rosto. Alegria e alívio. Mas havia algo mais ali, sufocando seu peito, inspirando aquele pranto, incontido, mas reservado, discreto...Era medo...
O bebê chorava em seu colo, pequeno e frágil, mas vivo.
Rita sentia também a culpa que não era sua, mas que se espalhava em sua consciência. Sabia que não seria fácil cuidar sozinha dos dois filhos e temia não conseguir fazê-lo sem prejudicar o mais velho, tão inocente, tão ignorante das mazelas da mãe. Se ela tivesse ouvido a cunhada e se preservado, não estaria em risco de impor as privações ao rebento.
De repente, percebeu a injustiça daquela ideia. Sentiu-se mal por ver aquela criança em seus braços como algo ruim, algo que poderia ter evitado. Mirou Dodô com raiva nos olhos. Dos olhos, vieram as lágrimas, embaladas pelo conflito de emoções, de dores, de incertezas...
-Ele vai viver, Iaiá?- ela perguntou, cedendo à consciência.
-Vai sim, fia. O pequeno é forte, é fio de Ogum.
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O Filho de Ogum
General FictionTrata-se das mazelas de um órfão da cana. Como tantos outros jovens do interior do Brasil, sua vida orbita o plantio da cana-de-açúcar, cujos ciclos ditam os rumos dos habitantes de uma pequena cidade paulista. Desde a migração de seus pais até sua...