Martelo e Bigorna

139 5 0
                                    

Um homem engravatado anunciava a fusão de duas grandes usinas na televisão ligada. Seu rosto era impassível, desapaixonado, quase estóico. Traía-o, porém, um meio sorriso cínico que vez ou outra lhe escapava, sobretudo nas notícias que envolviam crimes violentos, ganha pão de muitos como ele. Sua aparência, no geral, era impecável, não havia um só fio de cabelo fora do lugar no penteado bem trabalhado, de sua barba restava uma pequena sombra que encantava as espectadoras e lhe dava um ar de credibilidade diante dos espectadores. "A expectativa" dizia ele "é que mais temporários sejam contratados para cobrir os períodos de safra de cana-de-açúcar na região".

As palavras de alvitre miravam o solo fértil, mas caíam em pedra estéril. Rita se apoiava na tábua de passar ao lado de uma pilha de roupas, as crianças gritavam enquanto brincavam com dois carrinhos de plástico, sonhos rústicos do natal passado; e dona Iaiá bordava um tapete de barbante. Todos indiferentes ao noticiário. Dizem que, no passado, as pessoas utilizavam o tempo de descanso para, efetivamente, descansar. Como se o silêncio fosse um momento de reflexão, uma oportunidade de buscar soluções para os problemas do dia-a-dia ou avaliar a própria conduta. Nos nossos dias, porém, o silêncio é algo pavoroso -talvez justamente por nos levar à reflexão, talvez pelo medo da solidão, moléstia esta que permeia quase a totalidade dos corações- então o preenchemos com o som vazio dos eletrônicos, os diálogos insossos das novelas e outras tantas banalidades efêmeras que a indústria do entretenimento proporciona.

O relógio marcava sete horas, mas o trabalho se estenderia até às onze. Era a rotina da casa: Rita acordava às cinco para limpar o chão, dar café aos filhos e levá-los à creche; ia trabalhar e voltava às seis da noite, começando a passar as roupas que Iaiá lavara durante o dia. Só suspendia este serviço para fazer o jantar, mas logo recomeçava. Por fim, tomava um banho e deitava na cama até conseguir dormir, o que só ocorria quando as dores do corpo arrefeciam ou o cansaço as engolia por completo.

Indiferentes, as crianças brincavam. Os dois filhos se davam muito bem. João era o mais novo, mas já ameaçava superar o irmão em tamanho e vigor. Muitas vezes assumia o papel de protetor e advogado do primogênito Cauí, um tanto franzino e tímido, e que , por causa do caráter manso e bondoso, aceitava de bom grado o carinho do caçula. Era jovem demais para ter orgulho, embora não o fosse para os óculos pesados e de lentes grossas que usava, artefato que contribuía para aumentar sua inerente inibição. Em comum só tinham a mãe e a falta de pai... Ah, e a supervisão de Iaiá. Inocentes, ignoravam as intrigas familiares e não notavam quando a Tia Dolores favorecia Cauí, na tentativa de hostilizar o mais novo. Ela fazia questão de pontuar a diferença de sangue dos pequenos, fazia insinuações sobre a diferença de aparências e ânimo, pior que isso, dava ao sobrinho presentes no natal, esperando que o outro ficasse com inveja. Chegou até mesmo a proibi-lo de emprestar um pequeno modelo Scânia com que presenteara o sobrinho em um aniversário.

-Deixa eu dirigir agora, Cauí- João pediu-lhe em certa ocasião.

Cauí arrastava o caminhão de modo desajeitado. O brinquedo, todo feito em madeira, era grande demais para si e ainda havia uma carroceria comprida que ele mal conseguia deixar alinhada.

-Não posso, Jão- o irmão respondeu- a tia mandou eu não deixar.

-Mas por quê?- o outro insistiu.

-Ela disse que eu sou o dono e só eu posso brincar com ele.

-Que diferença faz? A gente sempre brinca com tudo mesmo- disse com um gesto que abrangia a um só tempo os poucos pertences de ambos, o sofá, a rack...a casa e o quintal.

A resposta foi um dar de ombros seguido de um ajeitar dos óculos. João ficou amuado com a resposta, não entendia aquela injustiça. Também não entendia porque o irmão atendia às ordens da tia, já que ela nunca saberia o que se passasse longe de suas vistas. Uma ideia lhe ocorreu.

O Filho de OgumOnde histórias criam vida. Descubra agora