João viu a mãe apertando o passo e tomando distância, até sumir em uma esquina. Iaiá estava entretida com Cauí, fazendo-lhe cócegas, enquanto o apoiava sobre a mureta de concreto. O garoto custou a sorrir, mas depois não parou mais. A mulher beijou-lhe o tampo da cabeça enquanto dançava os dedos em seus flancos.
Os dedos de João seguravam a mochila, profundamente enfiados no tecido feito garras. Ao seu lado, a mulher sorridente com seu maço de cabelos acinzentados que se recusava a serem detidos pelo lenço amarelado e o irmão de olhos apertados, distraído, perdido no céu matutino.
-Por que você chorou?- João perguntou.
-Porque você me bateu. Doeu.
-Não bati! Eu tava brincando!
Cauí deixou-se afundar no colo de Iaiá, segurando firmemente em seus antebraços. O abraço protetor da velha não o fez esquecer a amargura da injustiça. Virou o rosto, fugindo do irmão.
-Bateu sim...e doeu!- murmurou com as lágrimas reaparecendo em seus olhos.
-Você tinha que correr atrás de mim, Cauí. A mãe ficou brava comigo.
-Oh, menino!- interrompeu Iaiá- mas que ocês tão riliando? A essa hora do dia, tem cabimento?
-Ele que começou-Cauí falou- ele me bateu.
-Não bati, Iaiá! Eu tava brincando de pique e peguei ele. Era a vez dele e ele tinha que me pegar.
-E precisava bater, João?
-Eu só relei nele!- protestou o garoto.
-E relar tira choro da onde?
-Pergunta para ele!
-É que doeu, Iaiá
A expressão da mulher se amenizou novamente ao ver a ingenuidade daqueles seus filhos apensos.
-Brincadeira de mão não dá certo- falou já com o sorriso engolindo o rosto- Cês sabem disso.
O peito de João fervia quando sua mãe gritava consigo. A mulher começava a falar mais alto e mais alto enquanto seu rosto ia ficando mais e mais vermelho. Ela não tinha muita paciência. Iaiá era o contrário. Ela falava e, quando não estava rindo porque o assunto era sério, falava mais lentamente e mais baixo, para pessoa forçar o ouvido e prestar atenção. Era raro ela encompridar um assunto. Ela gostava do silêncio e o silêncio deixava João confortável. As palavras da mãe o enchiam de culpa e de raiva.
Iaiá não pediu para os dois pedirem desculpas e os garotos ficaram gratos por isso. Cauí ainda estava amuado, escondendo-se entre no colo de Iaiá e perguntou porque aquilo acontecia.
-O que?
-Eu e o Jão. Não gosto de briga.
-Às vezes, o amor dói- Iaiá abraçou-o com mais força, porque seus amores também doíam.
Sozinho, o caçula aproveitou-se da distração dos companheiros e passou a explorar o jardim de sua cuidadora. Livrou-seda mochila e rumou para o jardim. Ele não precisava de abraços como o irmão e tinha tempo até irem para a creche. Havia tantas plantas que quase não sobrava espaço para ele passar. Elas se recusavam a obedecer os limites impostos pelos caminhos de concreto e tomavam o território humano.
Virado contra uma parede pintada de amarelo, o miúdo caminhou até passar por baixo de uma janela de metal aberta, apoiando os pés contra a beirada do alicerce e segurando no parapeito, escalou e enxergou o interior do quarto.
A janela parecia uma boca com mau hálito. O ar fresco da manhã parecia recusar-se a penetrar o ambiente. A cama grande já arrumada e os armários cheios de naftalina pareciam mergulhados no ar quente.
João desistiu da ideia de pular a janela e voltou a explorar os arredores. Dirigiu-se para os canteiros, entre os quais havia um pequeno passo insuficiente para um adulto caminhar, mas não para ele. João penetrou entre a roseira e um arbusto de santa-rita. Os galhos das plantas se uniam, formando uma abóbada coberta por uma cortina de folhas diferentemente esverdeadas.
Abaixado e com os joelhos roçando o chão áspero, João arrastou-se pelo caminho que se abria. Com dificuldade por causa da grande quantidade de galhos, mas com determinação. Logo estava virando uma esquina, contornando a roseira e alcançando um canteiro próximo à mureta conquistado por espadas-de-são-jorge, lírios-da-paz, antúrios e bromélias.
Aquele era o lugar da casa de Iaiá onde ele passava mais tempo. Era seu palácio, os galhos o seu teto. De vez em quando sumia, perdia-se da mãe ali quando estava brava demais. Na maioria das vezes, quando se está criança, você não tem medo da sua mãe, mas não tem paciência para o sermão porque a culpa daquela raiva não é sua. Você não quer aquilo, então escolhe entre se esconder ou se resignar, esperando que acabe logo, a tempo de continuar a brincar, a tempo de continuar a existir.
João não queria sair daquele pedaço de jardim. A não ser que fosse para passear em outros cômodos de seu palácio. O Salão dos Temperos na lateral esquerda do terreno, a Torre dos Chás, a Floresta Frutífera. Queria ficar ali para sempre. Não queria ir para a creche sentir calor e aprender canções. Embaixo daqueles arbustos, tocando o chão de pedra, uma brisa leve soprava, enquanto se observava a marcha apressada das formigas, o voo concentrado das abelhas, os estranhos tatus que se embolotavam quando eram tocados, os caracóis que se escondiam em suas conchas, as lesmas que se esparramavam em seus caminhos intermináveis e deixavam para trás um rastro de sujeira como se fossem humanas.
E também os besouros: pequenos e marrons, grandes e pretos, os pretos- e-dourados, os vermelhos de tórax verde, os verdes de tórax preto, os coloridos, os de marfim salpicados de pretos, as joaninhas vermelhas, os imensos escaravelhos pichados de jade pelos dedos de Ossanha.
Havia insetos feios como os chupões e os bonitos como as borboletas. Os ameaçadores como a mamangaba e os marimbondos e os inofensivos como as minhocas que brotam da terra quando chove demais ou os mandruvás que faziam casulos para aprender a voar. E havia as taturanas que pareciam inofensivas mas queimavam a pele se você as tocasse.
E as aranhas.
João passou uma tarde de domingo inteira observando uma aranha em sua teia. Não era daquelas que ficavam dentro das casas, de pernas compridas e corpo pequeno. A daquela tarde tinha o corpo todo proporcional e preto com pintinhas amarelas. A teia era uma obra de arte, toda simétrica, esculpida no ar. A criatura ficou parada a maior parte do tempo até que uma formiga que corria pela folha tangente se aproximou demais. Ficou presa quando tocou na matéria quase transparente. A dona da obra correu com suas oito patas e cercou a formiga, embrulhando-a em poucos segundos.
Outro dia, mexendo nas flores, João encontrou um casulo de teia de aranha. Cutucou-o com uma varinha e o casulo explodiu em milhares de filhotes pequenos. No centro, a Mãe imensa, de um amarelo esbranquiçado e olhos tão esféricos quanto gotas d'água.
João continuou se arrastando agachado até que viu uma figura erguendo-se da terra vermelha. Seus pés eram desproporcionais e distorcidos. Um sorriso imenso saltava de seu rosto de pedra. Na mão um cachimbo. Um rosto bonachão e cabelos ondulados esculpidos cobertos por um chapéu. Estava perdido no meio dos antúrios.
O garoto tentou se aproximar, mas algo o segurou. Ele continuou se arrastando, erguendo o braço e, cada vez mais puxando o pano de sua camiseta que engastalhara nos ramos esverdeados. João tentou se levantar, apoiando-se nos joelhos e nos calcanhares. Os espinhos da roseira morderam fundo seu braço, sua perna e sua cabeça. Um risco branco foi se formando até se tornar um buraco na pele negra, de onde surgiu o sangue vermelho da cor dos antúrios, das bromélias, da terra granulada de onde brotavam aquelas plantas que agora tentavam brotar para dentro dele.
Os espinhos pareciam minúsculas presas, volteadas, afiadas. João entregou-lhes a camiseta e continuou seu trajeto, ferido e sujo. Mais alguns poucos metros. Afastou um ramo, tomando cuidado para não se machucar novamente.
Alcançou o preto velho.
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O Filho de Ogum
General FictionTrata-se das mazelas de um órfão da cana. Como tantos outros jovens do interior do Brasil, sua vida orbita o plantio da cana-de-açúcar, cujos ciclos ditam os rumos dos habitantes de uma pequena cidade paulista. Desde a migração de seus pais até sua...