Rita abriu com pressa o portão de sua casa, ignorando o rangido da dobradiça mal lubrificada. Trazia o mundo nas mãos e muito mais na cabeça. Incitou os meninos a acelerarem o passo. Apesar da madrugada maviosa que se contraía de forma indolente, já estavam atrasados.
-Por que não posso ficar em casa?- João perguntou coçando os olhos.
-Não começa, rapaz- Rita repreendeu-lhe com um leve empurrão no ombro.
Cauí parecia mais animado que o irmão naquela manhã. Não tinha muitos amigos na pequena turma do maternal onde estudava, mas gostava de reproduzir no caderno os rabiscos primevos que a professora ensinava. O desenvolvimento de seu aprendizado era notório em contraste com os outros pequenos com quem compartilhava as aulas, em geral tão agitados e dispersos que não conseguiam se concentrar a contento nas singelas tarefas que lhes eram apresentadas.
Rita bateu o portão com força, desaprumando trava e encaixe. Para arrumá-los, tinha de abri-lo novamente. O portão resistiu a seu puxão. Rita colocou mais força, no limite do possível com todo o esforço que já estava fazendo, e conseguiu arrastá-lo, arrancando terra com o pino na parte inferior que caíra com a movimentação sem que ela visse.
Sua mão, puxada para baixo com o peso da bolsa, segurava o molho de chaves desajeitadamente, passando uma a uma entre os dedos, tentando encontrar a correta. Suas chaves eram um breviário de sua vida: tinha a chave da porta, a chave do portão, a chave do cadeado do portão, a chave de um depósito que serviu de estacionamento para o caminhão de seu esposo falecido, a chave da porta da frente de Iaiá, a chave do portão e do cadeado de Iaiá, a chave da porta dos fundos de Iaiá...havia até chaves de uma casa onde morara há muito tempo, mas que mantivera por motivos obscuros até para si mesma.
Atrás da mãe e longe de seu olhar distraído, João deu um tapa em Cauí e começou a correr.
-Tá com você!- gritou, anunciando sua fuga.
Brincavam de pique o tempo todo, inclusive quando estavam indo para a escola. Era a distração preferida de João, que transbordava energia. Cauí já havia acompanhado o irmão na brincadeira por vezes suficientes para saber que era a sua deixa para perseguir o irmão. Naquela manhã, porém, o tapa inocente ardeu-lhe a pele, inflamando um choro angustiado. Viu-se injustamente condenado e punido.
O choro estridente pegou Rita de surpresa e derrubou suas chaves. O som dos pequenos artefatos de metal contra o chão sumiu em meio à cacofonia das crianças.
Rita oscilou entre os filhos e o portão, apressada pelo ponteiro do relógio que sabia aguardá-la na usina há muitos quilômetros de distância. Aquele momento de indecisão custou-lhe uma dor de cabeça que duraria o resto do dia.
-João!- ela gritou- Vem aqui agora.
-Mas, mãe...- João tentou responder.
-Agora!- Rita pontuou.
João desafiara a mãe uma vez e lembrava do castigo com amargura. Escrutinou o terreno enquanto decidia o que fazer. Não valia a pena fugir. Aos poucos, aproximou-se.
-Pega essa chave do chão. Cauí, para de chorar!
O primogênito silenciou instantaneamente. O amor e o medo que sentia pela mãe eram formidáveis.
-Pega essa chave do chão- disse olhando para João – Agora! Não quero saber.
João, interrompido antes mesmo de protestar, olhava perplexo para a mãe. Antes de pensar novamente em protestar já estava com as chaves na mão.
-Agora, segura minha bolsa- disse, entregando-lhe a bolsa pesada, surrada, livre de cosméticos e cheia com os instrumentos de trabalho.
Livre do fardo, Rita fechou o portão, e o trancou. Não sendo o bastante, passou a corrente e a prendeu com um cadeado.
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O Filho de Ogum
General FictionTrata-se das mazelas de um órfão da cana. Como tantos outros jovens do interior do Brasil, sua vida orbita o plantio da cana-de-açúcar, cujos ciclos ditam os rumos dos habitantes de uma pequena cidade paulista. Desde a migração de seus pais até sua...