Por um olhar

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Houve, no nono ano, um caso a se lembrar. Mu Qing não transbordou, mas enfrentar o que sentiu deixou-o bem perto disso.

O garoto começou a trabalhar na Cafeteria Xianle com quinze anos para economizar para a faculdade e ajudar sua mãe. Não gostava da ideia de trabalhar no comércio dos pais de um amigo, mas foi o único lugar que aceitou seu currículo.

Não se completou nem uma semana desde sua contratação para que Xie Lian e Feng Xin também começassem a trabalhar consigo.

Xie Lian queria provar para seus pais (e para si mesmo) que era capaz de fazer as coisas direito. Sendo filho dos proprietários, foi fácil ser contratado.

Já Feng Xin ... o caso era um pouco mais complicado.

Nas férias de fim de ano, seus pais se divorciaram. Desde então, com eles distraídos demais brigando, fugia de noite para muitas festas juvenis de procedência meio duvidosa. O próprio Xie Lian já teve que buscá-lo de madrugada e salvar sua pele mais de uma vez.

Quando a mãe dele descobriu, cortou toda a liberdade do filho e implorou para os Xie deixarem-no trabalhar na cafeteria para "colocar juízo" nele.

Feng Xin definitivamente odiou. Ele era pêgo constantemente debaixo do balcão mexendo no celular, ou fazendo tudo de qualquer jeito e obrigando os amigos a refazerem em seu lugar.

Mu Qing perdeu a conta de quantas vezes quis enfiar a vassoura naquele lugar do outro. Se não fosse a consciência da situação dele e de que ele próprio já foi um merdinha quando sua mãe estava doente, teria rasgado bem antes e por muito menos.

Sua paciência começou a queimar de verdade quando os "esquemas" de Feng Xin passaram a frequentar Xianle.

O castanho demorava cinco vezes mais do que o necessário para atendê-las, quase sentando na mesa junto com elas para conversar. Também gastava metade dos guardanapos disponíveis mandando "recadinhos" para elas, fora as idas ao banheiro de meia em meia hora para arrumar o cabelo.

E o fato de Xie Lian ser um completo desastre em todas as tarefas daquela cafeteria fazia seu trabalho triplicar.

As únicas coisas impedindo o garoto de jogar a toalha eram (1) o quanto precisava daquele emprego e (2) o gerente, Pei Ming, salvava sua pele quase todos os dias.

O homem era o epitome do termo "mulherengo", mas sua experiência naquela cafeteria e sua paciência evitaram que Mu Qing ateasse fogo no lugar, nos amigos ou em si mesmo.

(E ele ao menos não deixava nenhuma ficante saber da existência daquela cafeteria. Se o fizesse, o moreno não ia aguentar e se demitiria.)

O garoto foi levando a vida como podia. Depois de todo o estresse envolvendo o câncer da mãe, suas notas voltaram ao normal e os olhares diminuiram novamente.

Quando Feng Xin, além de todo o listado acima, começou a esquecer de si e de Xie Lian no colégio para correr atrás de possíveis ficantes, sentiu-se verdadeiramente traído.

— Quanto tempo você acha que a BoAn vai durar com ele? — questionou ao ver a garota rindo com o ... amigo?

— Talvez uns dois dias. — chutou o castanho, sem desviar os olhos da própria apostila — Ela é bem legal. Ele não vai enjoar tão rápido assim.

O moreno revirou os olhos com força.

"A gente também é bem legal, caramba. Ele que parece ter esquecido ..."

— ... Xie Lian ... — forçou-se a falar, suas mãos tremendo em seu colo — ... Foi difícil assim quando a minha mãe 'tava doente?

Mu Qing era plenamente consciente do quão difícil é ser seu amigo. Ele mesmo queria se bater constantemente por ser um idiota. E, apesar de Xie Lian e Feng Xin entenderem completamente que aquela foi uma época delicada ao extremo, a dificuldade não suavizou. Apenas no fim do sétimo ano que ele conseguiu tirar tijolinhos o suficiente de sua muralha interior para que a amizade que mantinham de fato melhorasse significativamente.

Até TransbordarOnde histórias criam vida. Descubra agora