Capítulo 1: O Sujeito

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                                 ALICE

  Seg, 07 de março de 2022
  Califórnia – Trinity, 11:15 AM

  Sinto a chuva gelada me deixando encharcada, espero muito que não comece a trovejar, não agora.

  A rua está vazia e as casas são todas padronizadas, nem muito grandes, nem muito pequenas, feitas de concreto e pintadas em cores claras. É a imagem perfeita de uma vizinhança amigável e tranquila, até verem os maconheiros que gostam de ficar embaixo das árvores. Pela primeira vez no dia vejo o lado bom da chuva inesperada: os maconheiros evaporaram junto com a fumaça.

  Estou virando na rua de casa quando ouço um barulho. Verifico se tem algum perigo eminente. Nada. Continuo andando e... tropeço em alguma coisa.

  — Ah, merda! — solto, depois de cair em uma poça de água suja, lama e sabe-se mais o que.

  Hoje ainda é segunda-feira e meu uniforme acabou de declarar desistência. Me levanto e olho ao redor, não vejo ninguém e sem testemunhas, nada aconteceu. Baixo os olhos para ver no que tropecei. Vou dizer que não esperava encontrar uma pessoa, muito menos uma pessoa do sexo masculino completamente nu, exatamente como veio ao mundo e ainda por cima inconsciente.

  Espero meu cérebro processar a informação e percebo que uma pessoa nessas condições provavelmente é um vagabundo que desmaiou de bêbado, chapado, algo do tipo. Ou pode ter sido assaltado, mas que tipo de assaltante deixa a vítima nua? Eu sei a resposta mas não quero pensar nessa possibilidade. De qualquer forma a chance de ser a primeira opção é quase 100%.

  Pena que meu código moral não me deixa ignorar homens nus no meio da rua prestes a pegar uma pneumonia. Mãe, por que me destes educação? Primeiro eu me certifiquei de que ele ainda podia pegar uma pneumonia. O cara estava tão frio que eu poderia confundir ele com um cadáver, mas ele estava respirando e o coração ainda batia. Então tirei meu sobretudo e o cobri. Talvez não faça muito efeito na chuva, mas pelo menos eu não sou obrigada a olhar para os países baixos dele.

  Parei, pensei e fiz a coisa mais sensata que me ocorreu, peguei o celular e liguei para a emergência, afinal, quem tá preparado para saber o que fazer em situações como essa? Eu que não sou idiota o suficiente para levar um estranho para a minha casa.

  Eu não sabia nem o que dizer para a mulher que me atendeu, mas lembro de dizer algo como "não, eu não achei nenhum documento" (o único documento que eu tinha visto provavelmente não era o que ela precisava), e em algum momento eu sei que informei o endereço, porque meia hora depois chegou uma ambulância e levou o sujeito.

  Ele continuou desacordado e no tempo da ambulância chegar também notei alguns hematomas. Só não consegui distinguir como ele os conseguiu, não tinha marcas o suficiente para ter sido de uma briga, então era o que? Sexo selvagem? Masoquismo? Nessa altura do campeonato eu não duvido de mais nada.

  Mesmo assim, eu não consigo deixar de lado uma sensação inquietante de familiaridade, que coisa mais bizarra. Deve ser um dos drogados da minha rua, o que explicaria muita coisa.

  Uma buzina de carro me tira do raciocínio sobre drogados e homens nus. Estou na frente de um portão, e tinha que ser o que o maldito carro quer entrar. Retomo o caminho para casa, meu corpo está congelando depois de passar tanto tempo na chuva e carregando metade do quintal de alguém nas minhas roupas.

   Conforme vou me aproximando da arcada da porta, pego as chaves, que soltam um tilintar muito satisfatório, mas acabo não precisando delas. Abro a porta de madeira escura com arabescos entalhados e sou recebida com um olhar de desaprovação da minha mãe, mas só até ela ver a lama e o tremor que percorre todo o meu corpo a cada três segundos.

   — Eu até quero uma explicação decente, mas acho que você precisa de um banho quente primeiro. — diz ela, com cara de poucos amigos. Minha mãe é o tipo de mulher que assusta até o mais bruto dos marmanjos quando quer, imagina eu, como a rata minguada que sou. Sorte que nasci filha dela.

    A casa é simples e elegante, decorada com o bom gosto de nascença da Dona Patrícia, vulgo mamãe. Ela sempre diz que "A casa é uma extensão de quem a habita", e olhando para ela e para nossa casa, eu tenho a obrigação de concordar.

  Tiro os sapatos para não sujar a casa, embora eu molhe todo o piso laminado que, ao ver como brilha, acabou de ser encerado. Definitivamente eu vou morrer hoje.

  Corro para o banheiro e nem me dou o trabalho de trancar a porta, somos apenas eu e minha mãe mesmo. Tiro as roupas que quase se fundiram à minha pele e tomo o banho quente.

  — Meu Deus, como eu precisava disso! — digo, assim que o calor da água me envolve.

  Desfruto de um banho demorado, desligo o chuveiro e vou pegar uma toalha no armário que fica embaixo da pia.

  Me seco e coloco o roupão branco que estava pendurado no gancho de ferro grudado na parede. Viro e olho no espelho, vejo que estou com um aspecto cansado, meus olhos cor de âmbar  possuem dois bolsões pretos para fazer companhia e meus cabelos pretos estão ficando mais ondulados do que cacheados, mas não sinto a mínima vontade de arrumá-los.

  Me dirijo ao meu quarto, abro o guarda-roupa e pego um pijama quentinho de pelinhos. Toda essa história me deixou cansada, eu só quero dormir, mesmo assim eu calço minhas pantufas e desço para falar com a minha mãe. Ela está esquentando meu almoço, o que faz meu estômago acordar, e agora que a fera despertou ela exige atenção. Tenho certeza que meu estômago disse "me ouça rugir", mas ninguém fala estomaquês então ninguém entendeu.

  Não acredito que esqueci de comer, eu nunca esqueço de comer. Isso só prova que esse incidente me abalou pra caramba. Alice Lewis Sugg não deixa de comer por nada.

  — Agora você vai me dizer o que aconteceu. — acho que deu para perceber que não se trata de uma pergunta.

  — Eu tropecei em um homem desmaiado no meio da rua. Não sabia o que fazer, então chamei a emergência e esperei lá até a ambulância chegar.

  — Por que você não veio para casa? Não precisava esperar com ele. E se esse sujeito fosse um criminoso, acordasse e visse você? O que você acha que iria acontecer, Alice? — ihhh, ela me chamou pelo nome, isso nunca é bom sinal.

  — Eu sei que deveria ter pensando nisso, mãe. Desculpa, na hora eu fiquei em estado de choque, não conseguia raciocinar direito e não queria deixar um cara nu sozinho no meio da chuva. Eu prometo que dá próxima vez...

   — ELE TAVA PELADO? ALICE LEWIS SUGG, NO QUE VOCÊ TAVA PENSANDO?ELE DEVIA SER UM LUNÁTICO ESTUPRADOR!!! — nome completo = causa perdida.

   — Ou poderia ter sido assaltado...

   — NÃO INTERESSA...— o rosto dela já estava vermelho que nem um pimentão.

   — Violado...

   — NÃO ME INTERROMPA, MOCINHA!

   — Sim, mãe. Você tem toda a razão.— quando ela começa a gritar, significa que ela não está mais ouvindo. Nem vale a pena tentar.

   É parece que um cara desmaiado no meio da rua é até tolerável, mas um cara NU desmaiado no meio da rua é inaceitável. Sabe eu até entendo, é um cenário bem improvável. Minha mãe continua gritando mas eu pego meu prato e começo a apreciar a comida caseira. Minha única preocupação agora é que as batatas estão acabando, e não tem mais batatas para fritar. Acho que vou passar no supermercado mais tarde, mas antes eu preciso dormir um pouco.

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