Capítulo 6: As Lembranças

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                                       ?

  "Papai, papai, papai"

  Sinto uma dor aguda no rosto, minha visão embaça e escurece. As lágrimas descem sem restrição e berro alto. Luzes se acendem tanto dentro quanto fora de casa e mamãe corre na minha direção com o desespero estampado em cada linha do seu semblante. Mas nós sabemos que não há nada que ela possa fazer nesse momento, nós sabemos que não existe um jeito de parar ele.

  Meu couro cabelo repuxa e olho para cima enquanto ouço minha mãe gritar meu nome em vão. Vai ser pior se ela intervir, sempre é. Não se pode parar um maremoto, apenas se afogar nele.

  "Papai, por favor. Papai, tá doendo"

  Minhas lágrimas nunca o comoveram.

  "Isso é culpa sua, tá vendo? Agora o errado sou eu, mas quem foi que quebrou os pratos? Foi você."
   
  "Foi sem querer, eu juro!"

  "Foi mesmo? Então por que eu estou sangrando, meu pequeno girassol?

  Uma pequena gota de sangue escorre por sua testa por causa de um caco que voou em sua direção

  "Papai,  desculpa. Desculpa! Desculpa! Eu queria esquentar a comida da mamãe"

  "Meu girassol, a mamãe não precisa de ajuda, entende? Mas será que a culpa é dela, então? É isso que você está dizendo? Alguém precisa ser punido pelo estrago que foi feito mas se a culpada foi a mamãe você não precisa se preocupar, certo?"

   Ele fala com uma voz calma e intensa ao mesmo tempo, isso me deixa com tanto medo quanto sempre me deixou. Sou largada no chão com brutalidade enquanto ele caminha em direção à sua esposa ajoelhada nos cacos de vidro. Não, não, não, não, não. Não era essa a minha intenção.
 
  "É minha, a culpa é minha, papai. Foi sem querer, desculpa, desculpa, desculpa. É tudo minha culpa, me perdoa, por favor!"

   Meu desespero nunca foi motivo de compaixão, mas continuei me dando ao trabalho de me desesperar por um bom tempo.

  "Desculpas não trarão os pratos de volta, meu sol. Você precisa aprender a lição, por mais que me doa dizer isso"

  Mas não é em mim que ele bate quando diz isso. Meu coração se quebra mais e mais e nunca para, ele pega o rosto feminino com tanta força que ficam marcas na pele e começa o show de horrores em que ele adora desempenhar o papel principal.

  Nesse momento algo desperta no meu interior e não consigo me impedir. Pego o caco de vidro e parto pra cima do homem que me concebeu.

  "O que?"

  Ouço um som de dor antes de sentir algo na minha cabeça.

  E então tudo apagou

                                           - 12 anos atrás

  Minha mente viaja pelas minhas lembranças como se fossem trechos de um filme, apenas um filme. Como se não fossem reais. Mas eu ainda sinto a dor, a mesma dor que sentia quando apanhava, quando...

  "É difícil amar, mamãe?"

  "Não, não é. Por quê?"

  "Porque eu acho tão natural quanto respirar, mas as pessoas fazem parecer tão difícil quanto não respirar, então comecei a achar que talvez o problema seja eu. É isso mamãe? Eu sou o problema?"

  "Então é isso que a preocupa? Jamais, jamais e eu repito de novo, jamais se sinta um problema, meu bem. Algumas pessoas não sabem amar porque já foram quebradas pelo amor, porque nunca foram amadas do jeito certo. No final elas acabam machucando outras pessoas pois os machucados que lhes foram infligidos não se curaram, se torna um ciclo vicioso, isso não é triste? Essas pessoas são as que mais precisam de gentileza, a vida já as castigou o bastante"

  "Então eu preciso tratar as pessoas que me tratam mal com gentileza?"

  "Se você conseguir, meu amor, apenas se conseguir. Você não é obrigado a tratar uma pessoa bem se essa pessoa a trata mal. Só porque ela está machucada, isso não justifica o comportamento dela para contigo. Se estiver em um dia bom, seja bom com essa pessoa. Se estiver em um dia ruim, não seja. Ninguém é obrigado a ser tolerante com pessoas que não sabem lidar consigo mesmas"

  "Então eu posso não ser gentil?"

  "Claro que pode, meu amor. Ninguém é de ferro"

  "Mamãe, eu nunca deixarei de ser gentil com você"
 
                                     - 10 anos atrás
 

                                 ***

  Seg, 14 de março de 2022
  Califórnia - Trinity, 00:00

Ela dormia com a bíblia, para que os demônios não pudessem sussurrar em seus sonhos durando a noite. Todos aqueles que ficavam silenciados durante o dia, ou ao menos parcialmente silenciados, atacavam quando a lua estava alta no céu, fazendo notar sua presença. Eles invadiam seus pensamentos com palavras venenosas, que corroíam de dentro para fora.

Nem sempre os sonhos são bons, mas para ela eles nunca foram bons, nem nos seus melhores dias a menina conseguia com que suas noites fossem bonitas. Apesar de ser obcecada pelo céu noturno, era incapaz de ter paz quando ele aparecia. Seria irônico se não fosse trágico. Mas podia muito bem ser os dois.
     
                                 ***

  Seg, 14 de março de 2022
  Califórnia - Trinity, 03:21 AM

O medo é uma ferramenta cruel, destinada a paralisar suas vítimas e fazê-las observar impotentes sua própria fraqueza domina-las.

- Você tem medo de mim? - pergunta, sensível diante da cena que ocorria.

- Suponho que deveria. - ele não está errado, mesmo assim a afirmação a machuca.

- Deveria. - responde ela, fingindo não se importar, como fez em mais da metade de sua vida.

- Ao menos me olhe enquanto me ameaça, minha criança.

- Não sou sua e muito menos uma criança. Você se certificou disso muio tempo atrás, papai. - queria que fosse simples, mas não é.

- Não seja tola, sempre será minha menininha.

- Ah, sim. A menininha dos olhos do papai, sempre tão doce, sempre tão obediente. Se acha muito esperto, não é? Com toda essa baboseira sentimental pra cima de mim? Realmente acha que isso vai mudar alguma coisa? Você traçou as linhas do passado, a culpa é sua e somente sua. Você fez isso comigo e me transformou nessa merda que eu sou hoje. Não tente fazer soar bonito como uma história feliz de contos de fadas. Não somos isso. Nunca seremos. Por sua culpa.

- Como você mudou, querida. Muito tempo se passou, parece que você finalmente se revelou minha filha com esse seu temperamento.

- CALA A BOCA!!! CALA A PORRA DA SUA BOCA, SEU DOENTE MENTAL

- Gritar comigo não vai mudar o sangue que corre em suas veias, girassol. E não me culpe pelas decisões erradas que está tomando. Não jogue o peso das suas escolhas no meu colo, nós dois sabemos que sempre há outra opção. Você escolheu isso porque quis. Porque é minha filha e é igual a mim. Somos espelhos um do outro e nenhum passado pode alterar isso. Sim eu tomei caminhos errados na sua infância mas você poderia viver com isso. Só não consegue porque é fraca. Sim, fraca. Deixa seus demônios te dominarem tão facilmente que quem vê de fora não sabe diferenciar o que acontece dentro de você. Eu sou o único que te entende, não é? Realmente quer me matar? Depois que fazer isso estará sozinha, minha pequena. Eu sou o único que pode te ajudar.

- Você subestima o meu ódio.

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⏰ Última atualização: Jul 02 ⏰

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