Capítulo 5: A Insuficiência e A Felicidade

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                                  ALICE

  Dom, 13 de março de 2022
  Califórnia – Trinity, 6:00 AM

  Um pé na frente do outro.

  Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita.

  Corro até que o aperto no meu peito passe, até que meus pulmões estejam sem ar e cada parte do meu corpo esteja latejando, até que eu esqueça de quem sou, até que eu pare de querer me atirar do prédio mais próximo.

  O desgraçado sabia. Ele sabia e mesmo assim fez isso comigo. Eu deveria ter escutado meus instintos, eles estavam certos. Eles sempre estão certos, mas isso não impede que meu coração se despedace cada vez que as palavras que nem mesmo foram ditas em voz alta soem na minha cabeça como um maldito prenúncio. "Eai? Conseguiu tirar uma lasquinha da sua ex?". Filho da puta. Essas palavras me fazem compreender que minhas feridas não estão tão fechadas quanto eu achava.

  O que mais dói não é o fato de terem feito uma aposta para brincar comigo. O que mais dói é ele ter aceitado. Arthur sabia o que isso significava para mim, me apostar como se eu não passasse de um objeto de troca. Eu odeio ele! Odeio ele por me expor ao ridículo e ao mesmo tempo tocar em partes doloridas do meu passado, odeio ele porque a confiança que um dia eu depositei em nosso laço não significou nada, odeio ele por me tratar como algo descartável.

  Insuficiência era a palavra que me descrevia naquele momento. Eu não fui o suficiente para fazê-lo mudar de idéia. A simples menção de algo assim deveria tê-lo conscientizado, mas aparentemente eu não significava tanto quanto pensava, para ele.

  Eu merecia esse tapa. Confiei em alguém fora do meu círculo íntimo, o único círculo que eu deveria a todo custo ter protegido com unhas e dentes. Depois de tudo eu deveria saber. Eu também tinha feito uma aposta naquela noite. Uma aposta comigo mesma. E eu tinha perdido. Hora de enfrentar as consequências, "docinho".

  O suor escorre pela minha testa e a roupa larga já está grudando no meu corpo. Não consegui dormir nada essa noite, meu corpo está cansado mas minha mente não me deixa em paz. Fiquei deitada até as 4:58, então eu cansei de me remexer na cama, coloquei uma roupa e saí correr para qualquer lugar que não me lembre dele, o que significa que eu corri muito.

  Ergo os olhos e vejo que estou perto da casa de Cloe. Eu me odeio. Sigo na direção oposta, só paro quando o alarme do meu celular começa a tocar, esse deveria ser o meu despertador, se eu ainda estivesse dormindo, claro. Hora de voltar para casa.

  — Alicee! ALICEEE! — grita uma voz familiar me fazendo desacelerar — Calma aí mulher, eu sou asmática. Uh! Como você consegue? Eu já tô ofegante só de te olhar.

  — Emily, meu Deus! Desde quando você acorda cedo? Sabe eu até te daria um abraço, mas... — estico minha camiseta para frente, mostrando o quão suada estou — ... acho melhor não.

  — Deixa de ser boba, garota. — ela me abraça, me levantando do chão.

  Emily é minha amiga desde a infância. Nossa amizade tem épocas e épocas. Já fomos próximas ao ponto de ela ficar mais na minha casa do que na dela e vice-versa, mas também já passamos meses sem nos falar. Mesmo assim nosso tom nunca mudou uma com a outra.

  — Menina do céu! Tenho tanta coisa pra te contar que eu vou precisar de uma semana só pra te atualizar de tudo que vem acontecendo na minha vida. — sua animação é tão contagiante que esqueço meu corpo e coração doloridos — O que acha de dormir na minha casa hoje?

  — Eu... — quase nego, mas preciso de uma distração e de descanso também, sabia que com Emy do meu lado conseguiria isso, ela faz as coisas ruins da vida parecerem triviais — ... adoraria. Precisamos mesmo conversar.

  — Sim, precisamos. Mas agora eu já vou indo, não posso me atrasar. Tenho um compromisso, inclusive vou te contar sobre ele mais tarde. — diz me dando um beijo na bochecha. — Te vejo de noite, gatinha!

  Observo ela indo embora e me direciono novamente ao caminho de casa. Senti falta dela.

                                    ?

  Ouço o sangue pingar, minha mente finalmente se acalma. São apenas mais cicatrizes, mais marcas que ditam o meu passado, o meu presente e o meu futuro. Uma pessoa condenada a andar entre a vida e a morte, apenas porque é incapaz de escolher entre um ou outro.

  Dou boas-vindas à dor. Minha velha companheira nas horas que ninguém estava olhando. Meu corpo é um mapa, contando minha história com uma dramaticidade cinematográfica. Cada um desses cortes foram feitos pelas minhas mãos, mas a dor infligida era apenas um eco de como eu me sentia por dentro. Um caco, uma ferida aberta que nunca irá se curar, eternamente jorrando um sangue que não mancha, mas destrói, varrendo qualquer vestígio de felicidade que encontra pelo caminho.

  Um...
  Um... dois...
  Um... dois... três...

  Meu corpo entra em frenesi. O ritmo. A dança da minha degradação. Cada passo era tão conhecido que era como relembrar nostalgicamente o tempo em que a dor era apenas uma palavra sem um significado verdadeiro, apenas um termo usado pelos mais velhos para definir uma coisa ruim, que não trazia felicidade.

  "Felicidade", que palavra engraçada. Todos a desejam mas no fundo ela não pertence a ninguém. Corre para onde quer quando quer, aprontando façanhas e zombando daqueles que ela escolhe não visitar.

  Talvez eu devesse tentar ser um pouco como a felicidade. Fugir daqueles que mais me procuram e aparecer de surpresa para aqueles que não me esperam. Ah, poxa! Mas é exatamente o que eu estou fazendo, penso ironicamente.

  Levanto lentamente, deixando a água misturada com sangue escorrer pelo meu corpo. A banheira velha e rachada nas bordas transborda quando faço menção de sair de suas barreiras protetoras. Não faço questão de pegar uma toalha, os cortes ainda estão frescos, iria fazer uma bagunça desnecessária e grudar na pele sensível das escoriações abertas, que limpo para não infeccionar.

  A roupa preta virou cotidiano.

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