Quatro

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A manhã seguinte, o dia de sua partida para Nova York, trouxe uma carta. Bastou um relance para que Irene visse que era de Clare Kendry, embora não se lembrasse de algum dia ter recebido qualquer carta dela. Rasgando o envelope para abrir e analisando a assinatura, Irene viu que seu palpite estava certo. Disse a si mesma que não a leria. Não tinha tempo. Além disso, não queria se lembrar da tarde anterior. Na verdade, não estava nem um pouco descansada para a viagem; a noite fora terrível. E tudo graças à falta de consideração inata de Clare pelos sentimentos dos outros.

Mas acabou lendo. Depois de seu pai e os amigos terem acenado em despedida e o trem avançar rumo ao leste, ela foi tomada por uma incontrolável curiosidade de ver o que Clare diria sobre o dia anterior. Afinal, Irene se perguntou tirando a carta da bolsa e a abrindo, o que ela poderia dizer, o que alguém poderia dizer, sobre uma coisa daquelas?

Clare Kendry dissera:

Querida Rene,

Como posso agradecer por sua visita? Sei que está imaginando que, devido às circunstâncias, não deveria ter pedido para vir ou que, então, não deveria ter insistido. Mas se tivesse como saber como fiquei feliz, como fiquei empolgada e alegre por encontrá-la, e como desejei vê-la mais uma vez (ver todo mundo, e não pude), compreenderia meu grande desejo de encontrá-la de novo, e talvez me perdoasse um pouco.

Muito amor para você e para seu querido pai, com minhas pobres desculpas.

Clare

E havia um pós-escrito:

Pode ser, querida Rene, pode bem ser, que, no fim das contas, o caminho que você escolheu seja o mais sábio e infinitamente mais feliz. Não tenho certeza neste momento. Pelo menos, não tanta quanto já tive.

C.

A mensagem, no entanto, não acalmou Irene. A indignação dela não foi reduzida pela referência lisonjeira de Clare à sua sabedoria. Como se algo, pensou encolerizada, pudesse fazer desaparecer, ainda que em parte, a humilhação passada na tarde anterior por causa de Clare Kendry.

Metódica como raramente era, rasgou a ofensiva carta em pequeninos quadrados desiguais que esvoaçaram e formaram uma pequena pilha em seu colo coberto por crêpe de Chine negro. Encerrada a destruição, juntou os pedacinhos, levantou-se e foi até o fim do trem. Lá, jogou-os por cima da cerca e os viu se espalhar, pelos trilhos, pelas cinzas, pela grama abandonada, pelos riachos de água suja.

Era o ponto final, disse a si mesma. A chance de voltar a ver Clare Kendry era de uma em um milhão. Se, no entanto, aquela possibilidade remotíssima acontecesse, só precisaria desviar o olhar e se recusar a reconhecê-la.

Ela tirou Clare dos pensamentos e passou a pensar nos próprios assuntos. Na casa, nos meninos, em Brian. Ele, que pela manhã iria recebê-la na grande e tumultuada estação. Ela esperava que ele tivesse ficado tranquilo e não muito solitário sem ela e os meninos. Não solitário a ponto de aquela velha, estranha e infeliz inquietação ter tomado conta do marido de novo; aquele desejo de ir para algum lugar estranho e diferente, que, no início do casamento, exigiu tanto esforço dela para reprimir, e que ainda a alarmava um pouco, embora a ideia agora surgisse em intervalos cada vez maiores.

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