Três

2 0 0
                                    

Como se suas preces fossem atendidas, no dia seguinte, Irene se viu frente a frente com Bellew.

Ela fora ao centro de Manhattan com Felise Freeland para fazer compras. O dia estava excepcionalmente frio, com um vento forte que deixou o rosto macio e dourado de Felise de um vermelho empoeirado, e encheu de umidade os olhos castanhos suaves de Irene.

De braços dados e cabeças baixas contra o vento, elas saíram da avenida para entrar na rua 57. Uma súbita rajada lançou as duas com inesperada rapidez na esquina e elas colidiram com um homem.

— Perdão — disse Irene, rindo, e, ao olhar para cima, viu o rosto do marido de Clare Kendry.

— Sra. Redfield!

Ele tirou o chapéu e estendeu a mão, com um sorriso simpático. No entanto, o sorriso sumiu de imediato. Surpresa, incredulidade e — seria aquilo compreensão? — passaram pelo rosto dele.

Irene se dera conta da presença de Felise, dourada, com cabelos crespos e escuros de negra, cujo braço ainda estava preso ao dela. Tinha certeza, agora, da compreensão no rosto do homem, enquanto ele olhava mais uma vez para ela e de novo para Felise. Havia também desgosto.

No entanto, não recolheu a mão estendida. Não imediatamente.

Irene, porém, não estendeu a mão para cumprimentá-lo. Por instinto, ao primeiro olhar de reconhecimento, seu rosto se tornou uma máscara. Ela o encarou com uma incompreensão total, um pouco como se estivesse lhe fazendo uma pergunta. Vendo que o sr. Bellew continuava com a mão estendida, ela dirigiu a ele o olhar frio de julgamento que reservava aos galanteadores, e continuou andando com Felise.

A amiga falou pausadamente:

— Ah! Andou se passando por branca, não foi? Bom, acho que estraguei tudo.

— Sim, talvez sim.

— Ora, Irene Redfield! Você fala como se isso fosse muito importante. Desculpe.

— Eu me importo, mas não pelo motivo que imagina. Acho que nunca na vida fingi ser branca, exceto por conveniência, em restaurantes, teatros, coisas assim. Nunca socialmente. Exceto uma vez. Você acabou de conhecer a única pessoa para a qual me disfarcei de branca até hoje.

— Lamento muitíssimo. A mentira tem perna curta e tudo o mais.

Conte-me tudo.

— Bem que eu queria. Você acharia divertido. Não posso, contudo.

A gargalhada de Felise era tão languidamente indiferente quanto sua voz fria.

— Será possível que a honestíssima Irene tem... Ah, olhe só aquele casaco! O vermelho. Não é um sonho?

Irene pensava: "Tive minha chance e não aproveitei. Só precisava apresentá-lo a Felise casualmente como o marido de Clare. Só isso. Idiota. Idiota."

Aquela lealdade instintiva com a raça. Por que não conseguia se libertar dela? E por que deveria incluir Clare nisso? Clare, que demonstrara tão pouca consideração por ela e pelos seus. O que Irene sentia, mais do que ressentimento, era um desespero aborrecido por não ter conseguido modificar seu comportamento nesse aspecto, por não conseguir separar os indivíduos da raça, por não conseguir dissociar a si mesma de Clare Kendry.

— Vamos para casa, Felise. Estou tão cansada que poderia cair dura.

— Mas não vimos metade das coisas que tínhamos planejado.

— Eu sei, só que está frio demais para ficar zanzando pela cidade toda. Se quiser, pode continuar, claro.

— Acho que vou fazer isso, se não se importa.

E agora Irene se deparava com outro problema. Precisava contar a Clare sobre o encontro que teve com seu marido. Alertá-la. Mas como? Fazia dias que não se viam. Escrever era arriscado, assim como telefonar. E, ainda que fosse possível entrar em contato com ela, do que adiantaria? Se Bellew não tivesse concluído que cometera um equívoco, se estava certo sobre a identidade dela — e ele não era burro —, contar a Clare não evitaria os resultados do encontro. Além disso, era tarde demais. O que quer que estivesse à espera de Clare, já havia acontecido.

Irene tinha consciência de um sentimento de gratidão e alívio com a ideia de que provavelmente se livrara de Clare sem ter precisado mexer um dedo ou pronunciar uma palavra sequer.

No entanto, pretendia contar a Brian sobre o encontro com John Bellew.

Isso, porém, parecia impossível. Estranho. Alguma coisa a segurava. Toda vez que estava prestes a dizer: "Encontrei o marido de Clare na rua hoje. Tenho certeza de que ele me reconheceu, e Felise estava comigo", não conseguia ir em frente. Soava demais como o alerta que ela queria dar. Nem mesmo na presença dos meninos durante o jantar Irene conseguiu proferir aquela simples frase.

A noite se arrastou. Por fim, desejou boa-noite a todos e subiu, sem pronunciar aquelas palavras.

Ela pensou: "Por que não contei a ele? Por quê? Se isso virar um problema, jamais vou me perdoar. Vou dizer assim que tiver uma chance."

Ela pegou um livro, mas não conseguiu se concentrar na leitura, de tão oprimida que estava por um presságio sem nome.

E se Bellew se divorciasse de Clare? Ele podia fazer isso? Havia o caso Rhinelander. Mas em Paris, essas coisas eram muito fáceis. Se ele se divorciasse dela... Se Clare ficasse livre... De tudo que poderia acontecer, essa era a opção que ela menos queria. Precisava afastar essa possibilidade de sua cabeça. Precisava!

Então logo surgiu um pensamento que Irene tentou afugentar. E se Clare morresse? Nesse caso... Ah, aquilo era maldade. Pensar, desejar aquilo! Sentiu-se tonta e nauseada. O pensamento, entretanto, permaneceu com ela. Irene não conseguia se livrar dele.

Ela ouviu a porta da rua abrir e fechar. Brian tinha saído. Virou o rosto para o travesseiro para chorar, mas as lágrimas não vieram.

Ficou deitada ali, acordada, pensando no passado. No namoro, no casamento, no nascimento de Júnior. Na época em que compraram a casa em que viveram por tanto tempo e foram tão felizes. Na época em que Ted passou pela crise de pneumonia e os dois souberam que ele ia sobreviver. E em outras memórias doces e dolorosas que jamais voltariam.

Acima de tudo, Irene havia desejado e se esforçado para manter a agradável rotina sem perturbações. E agora Clare Kendry entrara em sua vida e, com ela, trouxera a ameaça da instabilidade.

— Meu Senhor — orou Irene —, fazei com que março chegue rápido.

Pouco depois, ela dormiu.

IdentidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora