Dois

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Mas importava. Importava mais do que qualquer coisa jamais havia importado.

Que desgosto que o único medo, a única incerteza, que ela já sentira, o desejo de Brian de ir para outro lugar, tivesse se reduzido a uma banalidade infantil! E que, ao mesmo tempo, tivessem também sido igualmente reduzidas a coragem e a determinação com que ela havia enfrentado aquilo. As visões e os perigos que percebia agora faziam com que Irene se retraísse. Tentava evitar desesperadamente a informação que fizera surgir aquele tumulto dentro de si, que ela não tinha forças para moderar ou para acalmar. Quase conseguiu.

Pois, raciocinou ela, o que havia, o que tinha acontecido, para demonstrar que ela estava ao menos em parte correta quanto ao que a atormentava? Nada. Não vira nada, não ouvira nada. Não havia fatos ou provas. Estava simplesmente se deixando arruinar por uma suspeita infundada. Foi o tipo de situação em que, ao procurar um problema, acabou encontrando um. Só isso.

Confiando que não sabia de nada, Irene redobrou seus esforços para tirar da cabeça esse pensamento aflitivo sobre lealdades rompidas e confianças traídas, que surgia a cada vez que via Clare ou Brian. Não podia, não iria passar mais uma vez pela agonia dilacerante que acabava de deixar para trás.

Irene disse a si mesma que precisava ser justa. Durante todo o casamento, jamais teve o menor motivo para suspeitar de qualquer infidelidade do marido, nem mesmo um flerte sério. Se ele teve — e ela duvidava disso — seus momentos de conduta errática fora de casa, ela não sabia. Por que presumir o contrário agora? E com base em nada mais concreto do que uma ideia que lhe ocorreu por ele ter dito que convidou uma amiga, uma amiga dela, para uma festa na casa que também era dele. E em um momento em que estava, provavelmente, mais adormecida do que acordada. Como poderia acreditar que Brian era culpado sem que nada tivesse sido feito ou dito, ou sem que nada tivesse ficado para ser feito ou dito?

Como ela pôde estar tão pronta a renunciar a toda a confiança que tinha no valor da vida em comum deles?

E se, por acaso, houvesse algo pequeno? Bom, o que isso poderia significar? Nada. Havia os meninos. Havia John Bellew. Pensar neles lhe dava um pequeno alívio. Mas ela não encarou o futuro de frente. Queria não sentir nada, não pensar em nada; queria acreditar que tudo não passava de uma invenção tola de sua cabeça. No entanto, não conseguia. Não exatamente.

O Natal, com sua irrealidade, sua pressa febril, sua falsa alegria, chegou e foi embora. Irene estava grata pela confusa agitação do período. As irritações, as multidões, as fúteis e insinceras repetições de cordialidades a mantiveram afastada da contemplação de sua crescente infelicidade.

Também ficou grata pela ausência prolongada de Clare que, após John Bellew retornar de uma longa estada no Canadá, se recolhera à sua outra vida, remota e inacessível. Porém, com os muros da prisão dos pensamentos de Irene, colidia a ideia que tanto tentava evitar: de que, mesmo ausente, Clare Kendry continuava presente, por perto.

Brian também havia se recolhido. A casa contava apenas com sua presença física e continha seus pertences. Ele ia e vinha com a irregularidade e a ausência costumeira de ruídos. Sentava-se diante dela à mesa. Dormia ao lado dela à noite. Mas estava distante e inacessível. Não fazia sentido fingir que era feliz, que as coisas continuavam como sempre tinham sido. O marido estava infeliz e as coisas não eram como antes. No entanto, ela garantiu a si mesma, isso não se devia necessariamente a nada que envolvesse Clare. Era, poderia ser, outra manifestação do antigo desejo dele.

Porém, Irene realmente queria que fosse primavera, que fosse março, para Clare navegar para longe de sua vida e da de Brian. Embora tivesse quase chegado a acreditar que não havia nada além de uma generosa amizade entre os dois, já estava farta de Clare Kendry. Queria se livrar dela e de suas idas e vindas furtivas. Ah, se algo acontecesse, algo que fizesse John Bellew decidir partir antes da hora, ou que tirasse Clare de lá. Qualquer coisa. Ela não se importava com o que pudesse ser. Mesmo que fosse o fato de Margery, filha de Clare, ficar doente ou mesmo à beira da morte. Nem que fosse Bellew descobrir que...

De repente, sua respiração se acelerou. Por um longo tempo, ficou sentada, olhando para as mãos sobre o colo. Estanho, nunca tinha percebido como seria fácil tirar Clare de sua vida! Bastava contar a John Bellew que a esposa dele... Não. Isso não! Mas e se, de algum modo, o homem ficasse sabendo das visitas da esposa ao Harlem...? Por que ela deveria hesitar? Por que poupar Clare?

Porém, rejeitou a ideia de revelar ao marido branco de Clare Kendry qualquer coisa que o levasse a suspeitar que a esposa era negra. Ela não iria escrever isso, nem contar por telefone, nem pedir a alguém que fosse passar a informação para ele.

Irene estava presa a duas lealdades diferentes e, no entanto, iguais. Ela mesma. Sua raça. Raça! Aquela coisa que era um vínculo e que a sufocava. Independente do que fizesse, ou mesmo se não fizesse nada, algo seria esmagado. Uma pessoa ou a raça. Clare, ela própria ou a raça. Ou, quem sabe, as três coisas. Nada, ela imaginou, poderia ser mais irônico.

Sentada sozinha na silenciosa sala de estar à agradável luz da lareira, Irene Redfield desejou, pela primeira vez na vida, não ter nascido negra. Pela primeira vez, sofreu e se rebelou por ser incapaz de deixar de lado o fardo da raça. Bastava, ela chorou em silêncio, sofrer como mulher, como indivíduo, por conta própria, sem ter que sofrer também pela raça. Era uma brutalidade, e imerecida. Claro, ninguém é tão amaldiçoado quanto os filhos negros de Cam.

Contudo, a fraqueza dela, seu modo de se encolher, sua própria incapacidade de contornar aquilo, não impedia que desejasse ardentemente que, de alguma maneira que não dependesse dela, John Bellew descobrisse. Não que a esposa era miscigenada — Irene não desejava isso —, mas que ela passava todo o tempo que ele estava fora da cidade no Harlem negro. Apenas isso. Bastaria para se ver livre de Clare Kendry para sempre.

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