O menino e a deusa das palavras - Jucy Ferreira

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1º Lugar em Fantasia


Eu tinha dez anos quando vivi o primeiro bombardeio, estava na escola, a poucos quilômetros da casa onde morava com minha avó. O mundo caía aos meus pés e embora parecesse uma brisa quente pairando sobre um menino sonhador, eram, na verdade, pequenos pedaços de concreto que rasgavam minha pele pálida sobre o frio mórbido da neve em Munique. Era inverno de 1945, a Alemanha estava passando pela maior guerra da história, cuja sensação era de um terror absoluto. Naquele dia, quando senti a poeira sucumbir minha alma, caí no chão como uma malha cai na mesa de uma modista, era um sentimento de quase morte, mas principalmente, de dor, rasgando meus pulmões cujo ar arranhava meu interno em pequenas partículas de areia que se agrupavam tal qual uma onda de objetos cortantes. Fechei os olhos, pronto a desposar do futuro que me esperava cedo demais. Senti braços fortes me tomarem no colo, vi o mundo esvair-se de meus pulmões e quando decidi lutar contra a súbita necessidade de partir, fiquei inconsciente, morto por hora, embora, de fato, não estivesse.

Ao chegar em casa, depois de um longo período no hospital, senti como se a vida tivesse sido renovada. Quem, aos dez anos, consegue compreender tamanha grandeza? Eu sabia que estava desfrutando de uma segunda chance.

Estava brincando no quintal enlameado, quando fui chamado. Deixei meus pés sujos manchar o chão da cozinha sem me importar na bronca que receberia. Minha avó chegou por trás, me lançando um olhar de repreensão, embora, pouco tempo depois, fosse capaz de me olhar com extrema compaixão, entregando-me uma máquina de escrever que custava carregar.

Ela colocou o objeto na mesa à minha frente.

— Esta era a máquina de escrever do seu avô.

Eu assenti.

Aquela era a primeira vez que ela falava do marido depois de quase cinco meses do seu falecimento.

— Essa máquina era especial, sabe Adam? Ele ganhou do pai, que ganhou do pai dele e assim por diante. É uma relíquia de família e por isso estou passando para você.

Olhei para a máquina como se olha para um pedaço externo de si mesmo. Depois da morte dos meus pais, onde tudo parecia ser difícil demais, meus avós me fizeram enxergar a vida como uma pequena passagem cuja esperança fosse princípio para um bem maior; onde o amor era a essência das coisas absolutas entre sobreviver e permanecer vivo.

Um dia, após chegar da escola, que estava funcionando em um lar comunitário, sentei-me na escrivaninha de frente a máquina de escrever. Coloquei uma folha em seu corpo, pronto para datilografar, escrevi a primeira frase sequencialmente, mas ao encarar o papel novamente, nada estava escrito sobre sua superfície pálida. Tentei escrever diversas vezes, até compreender que ela estava quebrada. Antes de me irritar, peguei outra folha de papel e uma caneta-tinteiro e li a pergunta mais uma vez: escreva abaixo o seu maior sonho.

Falei, como se expressar em voz alta, revelasse o impossível:

— Desejo do fundo do meu coração, algo mágico o suficiente para me tirar daqui. Talvez uma árvore de folhas douradas que contém uma passagem mística a um mundo fantástico; um mundo belo o suficiente para me esconder enquanto o bombardeio acontece do outro lado. Isso seria bem melhor que um esconderijo em um porão coberto de tijolos onde não consigo enxergar a luz do dia.

Eu sorria, meu desejo era tão improvável quanto o fim da guerra parecia ser naquele momento. Eu encarava a folha em branco em um devaneio acolhedor. Foi só quando a máquina começou a fazer barulhos estranhos que despertei. Assustado, olhei para o objeto, incrédulo, minhas mãos tremiam e minha cabeça rodopiava, custei a olhar o que estava escrito ali, apertei os olhos na tentativa de focar a visão, então, finalmente, consegui enxergar.

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⏰ Última atualização: Nov 14, 2022 ⏰

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