Deitado no galho de uma árvore com o longo chapéu vermelho escuro no peito, François viajava em memórias.
É mesmo... havia uma menina lá também. Sua mente vagava nas recordações sangrentas de sua trajetória pirata, quando uma legião de Cavaleiros o cercara para executá-lo.
Certa vez o espadachim lera um livro onde um viajante debatia com sua própria sombra, e adquiriu igual hábito. Naquele dia ensolarado, protegido pelas folhas da árvore onde dormira, sua sombra se mesclava a da imensa planta.
- Sim, havia. - disse a sombra, confirmando o pensamento que lhe incomodava - Uma criança inocente.
- Um aprendiz de Cavaleiro - reforçou, fechando os olhos - que teve o mesmo fim de seu mestre.
- A morte pela sua espada.
Anos atrás, os Três Mosqueteiros (que eram quatro), os mais famosos Cavaleiros da época, emitiram a ordem expressa para toda a ordem: François L'Ollonais deveria ser morto.
O pirata fora cercado por uma tropa oficial de vinte Cavaleiros, doze aprendizes e setenta e seis auxiliares voluntários. Todos exímios esgrimistas ou de alto nível em pelo menos duas artes marciais.
Libertel, líder dos Mosqueteiros, empunhava sua espada de ouro; Ighalitel, o segundo, lâminas duplas de prata; Fraternitê usava uma destemida lança de titânio; Bondifiesta, primo do imperador francês da época, completava o quarteto de três com sua espada, foice e katana de aço inoxidável reforçado.
- Que honra - debochadamente declara François - Os Três Mosqueteiros em pessoa! E mais uma legião de figurantes.
- Se entregue ou morra. - sentencia Libertel.
- Não haverá segunda chance. - reitera Ighalitel.
- Tampouco piedade. - sorri Igualitê.
- Tome a decisão mais sensata, pirata. - complementa Bondifiesta.
- Certo - mal falou e decapitou todos os auxiliares. Conforme suas cabeças caíam do céu, seus corpos desabavam e o sangue jorrava como chuva, os Cavaleiros urraram de cólera e avançaram rumo a suas mortes.
François eventualmente sonhava com aquela batalha. Uma das poucas vezes que chegara perto de ser vencido. Seu histórico de lutas continha apenas duas derrotas. E uma delas fora por trapaça.
Agora, imerso em sombras e absorto nas próprias memórias, o espadachim tem o transe rompido por uma sensação. Sua aura, sempre ativa, cobre amplo espaço ao redor do mesmo, o que o permite sentir coisas ao redor e usar a aura para cortar quem estiver na sua área de alcance. Quando o robô de dez patas se esgueirou numa árvore próxima, imediatamente fora acertado na perna maior e principal.
No entanto, não fora cortado. François estranhou, visto que já havia fatiado aço outras vezes sem contratempos. No entanto, mal arranhou o robô.
Andando até o mesmo, tirando sua espingarda das costas e mirando no alvo, decide tentar a moda antiga.
O robô prontamente desvia do tiro, que despedaça a árvore que atinge, criando uma chuva de estilhaços e lascas. Se encarando, homem e máquina rugem um para o outro em meio as árvores.
A besta da espada e a besta metálica atacam uma a outra. A espada banhada de densa aura lança a fera com cabeça de leão e dez patas para o alto. No ar, abrindo sua bocarra, a fera metálica dispara projéteis explosivos, atingindo o chapéu do espadachim.
- Filho de uma... - girando sua espada, tenta novamente cortar o inimigo, que segura a onda cortante de sua espada com a pata de uma das pernas.
- Desista, "Flagelo Espanhol". Você não pode cortar uma liga metálica tão resistente quanto essa. - a voz saía do robô, com uma de suas patas servindo de hélice - Este é um metal extraído de minério do inferno.
- É mesmo infernal. - ignorando o robô, corta o ar dezenas de vezes, concentrando mais aura no processo. Ao final do gesto concluído em meio segundo tinha, em sua frente, uma onda de meio quilômetro de tamanho.
O robô não esboçava emoções, mas a respiração travando de quem o controlava, mesmo sendo mais baixa que o suspiro de uma formiga, pôde ser ouvida pelo espadachim.
Temendo pelo poder daquilo, ele desviou. Qual não foi sua surpresa, no entanto, quando a onda se virou na mesma direção que ele.
- Como está ligado a minha aura, posso manipular esse corte, buuuurro! - o robô, inevitavelmente, fora atingido e fatiado. Suas pernas foram todas cortadas, e tamanha foi sua deformação que não se poderia distinguir sua face da de um crocodilo ou sabiá, visto os destroços inenarráveis que sobraram da máquina fonte de orgulho de seu dono.
François guardou sua espada, satisfeito. Estufando o peito, berrou a plenos pulmões para que o responsável pela maquinaria aparecesse.
E fora ignorado.
Chamou novamente.
E novamente foi ignorado.
Tentou uma última.
Mas desta vez, surpreendentemente, não obteve resposta.
Voltando à cidade, comprou algumas carnes e decidiu beber um pouco. Para seu infortúnio, Rita o tinha no campo de visão, e prontamente correu para ele.
François gentilmente a recebeu com um caloroso chute no nariz.
E ali, ouviu tantos palavrões que até anotou alguns que não conhecia.
Vestida num antes branco e agora enlameado vestido de renda, a jovem Rita mal dormira, tendo repetido a história do profeta morto no bar para os pais dezenas de vezes.
- Eu detesto você.
- Eu gosto de você. - ela sorri, respondendo sem titubear. - Foi divertido passar a noite no Pântano dos Cornos?
- Lá é o... ninguém me falou que lá tinha esse nome! - reclama o francês.
- É, o corno é sempre o último a saber - debocha a criança, sendo perseguida pelo furioso espadachim.
Terminaram a corrida no bar, fazendo alvoroço ao entrar e tendo Rita se jogando para atrás do balcão. Bufando, senta e pede vodka.
- Fico feliz que tenha gostado da nossa vodka - comenta o barman, trazendo mais três litros - E me impressiona a força do seu fígado.
- Eu perdi ele.
- Quem?
- O fígado. Na única luta justa que perdi na vida.
- Conta, conta, conta! - insiste Rita.
- Eu tenho cara de contador de histórias, por acaso?
- Quanta rispidez, meu jovem. Seja mais ameno com as palavras, não é para descanso que servem as férias?
- Está certo. Bom, posso contar sim. - todos do bar puxam seus bancos mais para perto - Ei, virou sarau agora?!
- Soubemos por um outro turista que é um cara famoso.
- Quem? - cerra o olhar, arrumando a capa que eternamente cobre seu braço esquerdo.
- Um tal de Antony. Ele é gerente de um grande... como chama? - o barman busca a palavra, olhando para cima - Jornal!
- Porra.
- Mas fique em paz - um dos presentes fala - Mesmo se quiséssemos te denunciar, não teríamos para quem.
- Não?
- Não precisamos de policiais ou prisões. Temos os deuses para nos zelar devidamente.
- Sei. - revira os olhos - Bom, vocês sabem o que são piratas, né? - todos consentem - Pois bem. Então prestem bem atenção, pois vou contar...
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A besta da espada
AventureTentando tirar férias, o melhor espadachim do mundo visita uma isolada ilha, mas esbarra numa estranha perseguição com demônios, criminosos e segredos do mundo. Spin off que pode ser lida isoladamente do universo Dominantes.