um bicho-pau decadente

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minha morte não teve horário, nem dia, pois um bicho-pau não é capaz nem racional para entender esses termos. pois é tudo que eu sou: um bicho-pau decadente, desde a morte da minha face imponente, Super Phasma (nem tanto).

minhas pernas longas descansam sob a madeira de uma casa tradicional enquanto a tal super-heroína camuflada que me matou me tortura ainda mais com seu sorriso inalcançável ao me assistir tomar chá (com os olhos).

“a vó não tá em casa agora, ela foi lá no mercado da vila. desculpa pela recepção ruim.”

eu não respondo. não respondo há muito tempo. vilões falam, insetos não falam.

“fiquei sabendo que você veio aqui porque gosta de inseto. que bom, porque a última guria tinha medo de inseto e, depois das férias, nunca mais se ouviu falar dela. admito, foi engraçado.”

barulhos de grilos e, se escutar bem atentamente, perninhas fininhas passeando pela madeira das árvores. mastigando-as. entupindo-se de coisas gigantes demais em comparação aos seus estômagos pequeninos e orgânicos.

“olha... eu não sou intrometida, mas, quando se mora numa vila tão pequena, se sabe de tudo sobre tudo. e eu soube o porquê você veio aqui. nunca pensei que ia ouvir essas palavras saindo da boca da vó. pensei que, se algum dia ela dissesse um pecado em voz alta, teria um infarto logo. mas ela nem parecia surpresa. ela me disse que isso começou há muito tempo, desde que você era criancinha e começou a se esticar.”

esticar. pelas pernas. como um gigante fatiando um morcego e chupando sua carne, raspando o dente nos ossos e jogando a matéria orgânica restante em cogumelos venenosos. esticando, até não aguentar mais. grotesco demais. demais pra esse mundo. talvez até pro inferno.

“mas não precisa ter vergonha. a gente não é desse lugar cheio de prédios gigantes que você veio, mas entende. a gente já teve uns amigos que fizeram isso. e nosso objetivo na vila é assegurar que todo mundo esteja bem e aconchegado. que nem uma formiguinha num potão de açúcar, se você entender melhor assim. a gente assegura que todo mundo tenha esperança, porque é tendo esperança que esses pensamentos vão. você tá aqui pra se curar. não existe só inseto na natureza, viu? eu posso não entender muito disso aí que tu tá falando, mas sei o que você tá sentindo. não tem nenhuma corda, nem remédio, nem lugar alto muito perto. só muito amor e gentileza pra dar. pode chorar. eu tô aqui.” ALGUÉM ME AJUDA. SOCORRO.

ESPERANÇA. pela primeira vez desde que fui morto, olho para um gigante. e percebo a verdade que tento esconder desde que me conheço por inseto. eu sou gigante. e você é tão pequena comparada às minhas pernas longas. e você sorri como se fosse esperança ㅡ o inseto e a construção social inalcançável. e, de repente, parece tão alcançável. ISSO DÓI. e é tão desconfortável. porque, se eu chorar, é a prova viva de que eu não sou um inseto. eu não sou único. não sou uma esperança. sou um humano grande e esguio demais. com pensamentos grotescos e nojentos demais. dói. dói como nunca doeu antes. nem com cordas, lugares altos ou remédios. procuro um refúgio olhando para o chá, mas continua a doer, porque consigo enxergar meu reflexo gigante e lacrimejante.




(por favor alguém por favor isso dói isso dói para por favor isso dói por que vocês estão rindo eu sou só uma criança por favor não encosta em mim eu quero a minha mãe por favor alguém me ajuda alguém isso dói por que você grita não existe esperança ninguém vai vir te salvar garotinho POR FAVOR suas pernas são longas demais, bicho-pau ALGUÉM ME AJUDA POR FAVOR)




“insetos... não tem canal nasolacrimal.”

você me parece estar desesperada em busca de oxigênio, suspirando de forma forte a cada segundo que passo olhando meu chá esfriando com uma formiga morta boiando lá como se fosse eu; flutuante, defunto.

um barulho não natural das pernas de uma esperança escalando a mesa de madeira. estou assustado, porque não escuto mais nada a não ser esse som. esse som agoniante que quer me trazer esperança. você para ao meu lado e tem a coragem de encostar em um inseto asqueroso, feio, grotesco, nojento, como um humano pisando em uma barata já morta para assegurar sua superioridade a todas as formas de vida deprimentes, com instinto de sobrevivência suicida e pernas longas demais para passar desapercebida. sou eu. é um abraço. e eu choro como um bebê recém-nascido. um humano. como um maldito humano, eu choro e respiro e tenho vértebras.

ninguém seria capaz de assassinar o Super Phasma, eu deveria saber.

não foi a heroína que matou o vilão, no final. nem gigante algum.

fui eu. eu me matei.

esperança | CRAVITY +Onde histórias criam vida. Descubra agora