Capítulo 2

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Soltei sem perceber as palavras, que escapuliram da minha boca.
Caleb me olhou com uma sobrancelha erguida por um segundo a mais do que seria recomendado.
— Não, valeu. Eu pego um táxi... — Ele destinou ao aparelho um olhar tão sofrido que dei risada.
— Vem, não tem problema nenhum. Amanhã tu vai pra tua casa. — Saí andando e puxando-o pela mão. O que o álcool não faz com uma pessoa, não é mesmo?
Estava escuro, e eu fiquei feliz por ter alguém ao meu lado. Não era uma área muito violenta, mas qualquer rua escura é perigosa para uma mulher. Senti-me mais protegida com Caleb presente, mesmo não tendo cruzado com ninguém no curto caminho.
Conversávamos sobre nossas teorias para os próximos episódios de uma série derivada de um videogame. Era sobre um bruxo de cabelos brancos e olhos amarelos que precisava salvar uma princesa e acabava se apaixonando por uma feiticeira. No momento, aguardávamos a terceira temporada, e Caleb sugeriu que o mentor do personagem principal jamais poderia criar novos bruxos com o sangue da princesa. Isso era uma ideia completamente absurda, fui xingando o garoto até chegarmos na minha casa.
Ela era pequena, geminada. Era horrível ouvir tudo o que os vizinhos faziam, mas, por estar perto da estação e pelo valor do aluguel que eu pagava, estava ótimo. Caleb já estivera ali com os outros, mas só com os outros, e isso me deixava nervosa. Principalmente porque sábado de manhã era dia de faxina, então várias coisas estavam fora do lugar.
— Bom, tu já conhece tudo aqui, não é? — perguntei, tentando puxar assunto. A sala era pequena, com um único sofá azul de três lugares virado para a televisão. O tapete era creme, e ali não havia espaço para uma mesa de jantar. Portanto, o que me servia para comer (quando não o fazia na frente da TV) era o balcão de madeira que separava aquele projeto de cozinha que eu tinha da sala.
Caleb assentiu e colocou a mochila dele em cima do sofá, me olhando de forma indecifrável. Eu já não me sentia mais tão embriagada como quando saímos do bar. De repente, a consciência de tê-lo tão perto de mim foi demais para a minha cabeça.
— Vou lá dentro pegar roupa de cama pra ti — falei, sem olhá-lo.
Não entendia por que me sentia assim. Talvez as brincadeiras dele no bar tivessem um fundo de verdade, ou talvez fosse porque Caleb era o primeiro homem que dormia relativamente perto de mim desde Pedro. Abri o armário onde guardava a roupa de cama e puxei dois edredons, um travesseiro e dois lençóis. Estava fazendo muito frio, eu não tinha certeza se o aquecedor funcionaria a noite toda.
Balancei a cabeça, levando a roupa para a sala. Não queria aquele tipo de sentimento comigo, nem mesmo nada que fosse vagamente semelhante. Eu sabia o quanto a sensação era dolorosa, e não queria aguentar suas consequências mais uma vez. Então, defini que o melhor seria me manter o mais afastada possível de Caleb durante o tempo em que ele ficasse aqui. Só por via das dúvidas.
Não podia me dar ao luxo de...
— Achei que tinha se perdido... — Riu Caleb quando apareci com as cobertas. Neguei, também rindo enquanto deixava as roupas em cima do sofá.
— Quer que eu arrume pra ti?
Ele balançou a cabeça.
— Então... — comecei, mas parecia que minha mais nova resolução não tinha
me levado a lugar nenhum. Seu olhar intenso fez meu coração disparar naquele exato momento, me deixando corada e perdida com as palavras.
— Não estou com sono — disse ele, com uma sombra de divertimento no olhar.
Respirei fundo. Caleb parecia querer me provocar, e supus que talvez dois pudessem jogar esse jogo. Eu podia me fazer de doida e usar minha melhor arma: o sarcasmo.
— Bonitinho, minha vida não parou só porque tu está aqui — respondi, me aproximando e dando tapinhas no rosto dele, como uma mãe que ensina boas maneiras ao filho. Porém, sua reação não foi bem a que eu esperava: ele abriu um sorriso malicioso.
— E quem sou eu pra te atrapalhar, não é mesmo? — Foi Caleb quem se aproximou mais ainda, com o rosto a centímetros do meu.
Nossos olhares se conectaram de uma forma que eu não achei que fosse possível. Não mais, pelo menos. Ele ergueu a mão e deslizou suavemente pelo meu rosto até que seus dedos pararam no queixo, levantando minha cabeça.
— Eu quis fazer isso desde o momento em que sentou ao meu lado com esse maldito perfume doce e essas mechas rosas dançando ao seu redor... — sussurrou, fazendo um arrepio correr pelo meu corpo.
Um estalo na cabeça me deu uma luz de sabedoria e discernimento. Afastei- me, rindo.
— Vai continuar na vontade, querido — respondi, me distanciando e rumando para o corredor que dava para o quarto.
— Ah, qual é? Só um beijo! — ele pediu.
Voltei o caminho e coloquei somente a cabeça para fora do corredor, em direção a ele.
— Não.
Diverti-me vendo ele balançar a mão e se deitar no sofá sem arrumar a roupa, como se fosse um personagem de desenho derrotado. Ainda rindo de sua atitude, berrei do quarto:
— Não quero meu sofá sujo, então faça o favor de forrá-lo direito, hein? Ouvi sua risada em resposta.
Tomei banho, coloquei uma camisola azul-marinho e só aí percebi que tinha deixado a bolsa em cima do balcão da cozinha. Pus um roupão e fui até a sala, andando silenciosamente, esperando que ele já estivesse dormindo.
Mas minha sorte não é tão grande assim.
— Já estava com saudades? — perguntou quando apareci na sala.
— Haha! — Ri, irônica. — Claro, morrendo. Só vim pegar minha bolsa, volte a
dormir.
— Eu não estava dormindo.
Revirei os olhos e voltei para meu quarto. Ia deitar quando resolvi pegar um
copo d'água. E onde estava a água? Na cozinha, claro. Suspirei. Coloquei meu celular para carregar e voltei por onde tinha vindo.
Fui na ponta dos pés e achei que Caleb não tinha me ouvido até lembrar que abrir a geladeira e pegar um copo ia ser uma tarefa que emitiria ruídos, além da luz que com certeza me denunciaria. Oh, céus, me ajudem!
— Mas já voltou? — Escutei seu tom de riso.
— Vim pegar água, quer um pouco? — fingi-me de sonsa. Paula, uma moça que conheci no orfanato, dizia que era sempre o melhor remédio para situações que nos deixassem em uma saia justa. E ter um tagarela que te paquerava no sofá me parecia ser uma dessas situações.
— Não, obrigado — respondeu. Mesmo sem ver seu rosto, consegui detectar um sinal de riso em sua voz.
Revirei os olhos e entrei no corredor só para lembrar que precisava ligar o aquecedor antes que morrêssemos os dois congelados. Voltei para trás, fingindo que não o via. Por que eu simplesmente não fiz tudo o que precisava de uma só vez?
Ouvia sua risada, e foi impossível não rir também.
Virei a chave do aquecedor, tentando fazer com que ele ligasse sem fazer o escândalo de todas as noites. Mas com aquele aparelho velho não tinha conversa. Ele apitou, estalou, chiou e todos os "ou" possíveis. Eu só escutava o indivíduo deitado no meu sofá rindo e, dessa vez, isso me irritou.
— Por que tu não vem ajudar em vez de ficar rindo da minha cara? — disparei.
Caleb se levantou e veio ao meu encontro. Mexeu em uns fios, apertou alguns dos botões que ficavam no aparelho, e o aquecedor resolveu funcionar.
— Serviços gerais, à sua disposição, senhora — brincou, batendo continência. — Estamos disponíveis vinte e quatro horas.
Soltei uma gargalhada mais alta do que pretendia, e ele riu comigo.
— Vou te chamar todos os dias pra vir ligar essa birosca — soltei, sem perceber.
— Eu venho — respondeu, piscando um olho. — Agora, diga boa noite e vá de uma vez.
Dei risada, mas concordei. Já sentindo o ambiente mais aconchegante, rumei para meu quarto, fazendo uma lista mental do que precisava, se não podia pegar no dia seguinte. Como nada me saltou à mente, só concordei com meu visitante inesperado.
— Boa noite, querido — desejei, sorrindo.

Boa Noite, Querido (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora