Capítulo 1

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Hoje

Só mais um pouco... Mais um pouco... E... Pronto!
Respirei fundo. Acabei o último projeto da semana a tempo do fim do expediente. Odiava levar trabalho para casa ou deixar coisas para fazer na segunda-feira.
Alice e João já estavam me esperando com Caleb e Jennifer. Éramos inseparáveis, e o fato de eu, Lice e Jenny termos nos conhecido no último ano da escola, feito o mesmo curso na faculdade e trabalharmos na mesma empresa era o que me deixava mais feliz. Elas eram minha família. Eu não conhecia nenhum parente vivo, visto que eu havia crescido em um orfanato, e desde que...
— Lily! Vamos logo! — gritou Caleb já na porta, me chamando com a mão.
Sacudi a cabeça. Realmente não valia a pena ficar pensando naquilo. Já passou tanto tempo...
Amarrei meus cabelos loiros, que caíam pelas costas, em um rabo de cavalo alto. Puxei as pontas cor-de-rosa para os ombros, ajeitando a franja na tela do monitor desligado à minha frente. Estava precisando cortá-lo urgentemente, mas a preguiça de me deslocar até um salão de beleza era maior do que a necessidade do cabelo.
O inverno estava chegando, e tudo o que eu fazia aos finais de semana era ficar embrulhada nos cobertores assistindo séries ou lendo os romances que faziam meu coração se lembrar de uma época longínqua. Tudo isso para fugir da neve que começaria a se acumular no peitoril da janela e nos degraus que conectavam a porta de entrada à calçada.
Juntei minhas coisas e saí atrás dos meus amigos. Era sexta-feira e, como uma tradição nunca comentada, nós íamos ao restaurante em frente ao prédio da empresa jantar. E beber. Sim, beber bastante. Era tão comum que ninguém ia de carro naquele dia.
Pelo menos, o recente término das obras das estações de trem em Joinville fez com que minha vida e a de Caleb ficassem muito mais fáceis: uma estação tinha sido alocada na esquina de casa, outra a duas quadras do prédio onde ficava a agência de design em que trabalhávamos e uma terceira na rua da avó dele. Então, pegávamos o mesmo transporte. Jenny, Lice e João não tiveram a mesma sorte: continuavam tendo que pegar ônibus para voltar. No entanto, nossas saídas às sextas eram tão comuns que todos já faziam quase tudo no piloto automático.
Sentávamos sempre nos mesmos lugares: eu na ponta, Caleb à minha direita, João ao seu lado, Lice, e depois Jenny, que ficava à minha esquerda. Era sempre a mesma mesa, e os movimentos de todos eram tão mecânicos que eu desconfiava que, às vezes, ninguém nem notava o que fazia.
Trabalhávamos na ArtTech, uma das agências de design mais conhecidas do sul do Brasil. As meninas e eu éramos as ilustradoras, e João, Caleb e Rogério (um menino novo que entrara há dois meses) faziam nossos desenhos estamparem capas de livros, logos, cartazes e pequenas animações que serviam de propaganda. Eu não recebia muito, mas me sentia tão feliz de trabalhar com traços e cores que nem sempre o valor era tão importante assim.
Pedimos a comida e as bebidas: drinks com saquê para mim e Caleb, vinho branco para Jenny, cerveja para Alice e João. Conversávamos sobre o pedido da semana, que tinha sido descomunalmente grande. Todos tivemos que nos desdobrar para que o projeto ficasse pronto em uma semana e estávamos exaustos.
O garçom nos trouxe os pedidos com uma expressão um pouco incomodada, talvez pelo barulho que fazíamos – que não era pouco, na verdade. Eu e Alice ficávamos um pouco mais... exageradas quando bebíamos. O que não era nenhum motivo para que parássemos. Assim, só dei de ombros, rindo, quando o funcionário se foi.
— Ora, vamos, Luiz — gritou Alice para o garçom —, não é como se não estivesse acostumado com a gente!
Todos caíram na gargalhada com a tentativa falha da minha amiga de melhorar o humor do rapaz. Por algum motivo desconhecido, começamos a falar sobre as piadas mais ridículas de que já tínhamos ouvido. Era irônico como as meninas e eu tínhamos um catálogo vasto de cantadas baratas. Caleb e João acabaram incluindo várias na nossa lista.
— Não, não, escuta essa — João disse enquanto pegava na mão de Alice. — Com licença, moça, posso saber as horas? Eu olharia no meu relógio, mas não consigo tirar os olhos de ti.
Ele balançava as sobrancelhas, fazendo todos rirem. Alice também ria, mas estava completamente corada. Olha só! Ela tinha uma queda imensa por João, mas jamais admitiu. No calor do momento e com o álcool nas veias, ela deve ter esquecido de disfarçar.
Sobressaltei-me quando senti Caleb segurando minha mão e o celular com a câmera apontada para mim.
— Eu tenho uma melhor... — Ele limpou a garganta antes de falar. — Posso tirar uma foto sua pra mostrar ao Papai Noel o que eu quero de Natal?
Eu ri, inesperadamente encabulada. Ele continuou:
— Outra! Tu pode cair do céu ou de uma árvore, mas a melhor maneira de cair é de amores por mim.
João ria tanto que eu vi a cerveja que tomava voltar pelo nariz, e Jenny se engasgou com as batatas fritas que engolia naquele momento.
— Essa foi muito ruim!
Todos gargalhavam, a histeria aumentada pela quantidade de álcool que já tomava conta do nosso sistema. Caleb não soltou minha mão e, quando parei de rir, olhei em seus olhos. Podia ser efeito dos três copos de saquê que tomei? Podia.
Mas senti uma intensidade incomum, como se ele me olhasse por um segundo a mais do que o normal. Antes de me soltar, o vi piscar um olho para mim.
Balancei a cabeça, tentando clarear a mente e deixar aquilo para lá. As piadas continuaram, e minha barriga já doía de tanto rir. Nos vários momentos como aquele, em que ele queria demonstrar um ponto, ele segurava minha mão.
Não. Eu estava vendo coisas. Era loucura demais! Caleb e eu trabalhávamos juntos há três anos, não tinha como e nem por que ele sentir nada por mim agora. E nem eu por ele. Minha cabeça rodava, e eu não conseguia raciocinar direito. Com certeza, amanhã nem me lembraria do que tinha acontecido.
Quando Luiz apareceu no final da noite para nos avisar que já fechariam, dividimos a conta e andamos até a estação de trem que ficava ali perto. Jenny, Alice e João pegariam seus ônibus no ponto em frente à estação, e Caleb e eu pegaríamos o trem.
Despedimo-nos de todos. O jovem caminhava ao meu lado, fazendo piadas e me segurando quando eu tropeçava em alguma coisa.
— Tu não está tão bem, não é? — ele perguntou, rindo de mim quando percebi que tinha vestido o casaco por cima da bolsa e agora não conseguia tirá-la.
Eu ri da pergunta.
— E desde quando a gente sai bem numa sexta-feira?
Caleb concordou e me ajudou a ajeitar o casaco e a bolsa enquanto nos dirigimos ao último trem que sairia naquele dia. Quando sentamos, automaticamente deitei a cabeça em seu ombro, sentindo um pouco do conforto que seu perfume cítrico me trazia. Era um cheiro confortável, o que quer que isso significasse. Sentia-me bem ao estar perto dele.
— Essa semana foi puxada demais — falei, bocejando. Ele concordou.
O banco no qual sentávamos era virado para o lado, de frente para a janela na direção oposta do trem. Como estava escuro, o vidro refletia a luz interna como um espelho. Eu divagava, analisando todos os traços do rosto dele. O cabelo preto penteado para trás, com fios rebeldes que fugiam do gel que Caleb passava todos os dias; os lábios cheios; as sardinhas em seu nariz fino. Minha análise se estendeu até que chegássemos à próxima estação, quando seus olhos castanhos, que eu observava com tanto afinco, finalmente se cravaram nos meus.
Senti minha bochecha esquentar e desviei o olhar, fingindo que nada acontecera. Em algum momento que não notei, adormeci em seu ombro e acordei no exato momento em que a voz eletrônica indicava minha estação. Caleb também cochilara com a cabeça apoiada na minha. Levantei assustada, quase derrubando meu companheiro.
— O quê? Que foi? — ele perguntou, também assustado.
— Perdeu a estação! — exclamei, me culpando por ter me sentido tão confortável a ponto de ter adormecido no trem. Eu nunca fazia isso e quis culpar a bebida.
Ouvindo o sinal que indicava o fechamento da porta, segurei sua mão e puxei- o comigo. Olhei a porta se fechar e o trem partir.
— Mas por que fez isso? Era só eu continuar no trem que descia na estação certa na volta! — reclamou ele.
Virei-me, encarando-o.
— Era o último trem, Caleb. A não ser que tu quisesse dormir na garagem, não conseguiria voltar pra casa.
Ele me olhou por um longo tempo, como se ainda estivesse assimilando o que tinha acabado de acontecer. Bateu uma das mãos na testa. Respirou fundo antes de puxar o celular.
— Vou ver quanto fica um táxi daqui até minha casa.
Eu assenti e o observei enquanto teclava no celular, mas seus olhos se arregalaram com o preço. Sabia que era altíssimo para uma viagem relativamente curta. Pensei o máximo que a minha cabeça cansada e alcoolizada conseguia e não encontrei outra solução.
— Por que não dorme lá em casa?

Boa Noite, Querido (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora