Capítulo 3

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O fim de semana passou tão rápido que nem notei. Fiquei esperando Caleb sumir no fim da rua, voltei para limpar a casa e só fui me dar conta do horário quando a Dona Beatriz, minha vizinha de parede, me ligou e pediu que eu abaixasse o som porque já eram onze da noite.
Domingo era o dia oficial da preguiça. Então, para não bagunçar a casa que tinha ficado tanto tempo limpando, deitei no sofá e só me levantei para abrir a porta para o entregador de comida, que já era meu conhecido há anos (apesar de eu nunca ter perguntado seu nome).
Conversei bastante com Alice e Jennifer, mas não cheguei a mencionar o fato de Caleb ter passado a noite comigo. Quer dizer, na minha casa. Ele dormiu no sofá, então não sabia dizer se ele tinha passado a noite comigo ou não. Balancei a cabeça; isso não queria dizer absolutamente nada. Era só uma amiga ajudando um amigo. Ponto final.
Toda essa discussão interna aconteceu enquanto eu me arrumava para ir ao trabalho na manhã de segunda-feira. Minha mente confusa tentava arrumar uma justificativa para o convite, mas jurava a mim mesma que não tinha nenhuma intenção além de ajudar.
Certo? Certo.
Suspirei quando terminei de fechar as botas. Peguei o casaco, minha bolsa, gorro, luvas e cachecol, todos de um rosa claro que combinava demais entre si e com meus cabelos, que eu mantinha sempre com cores divertidas. Paula havia me dito que a gente precisa colocar mais cor na nossa vida. Tudo criava um contraste lindo com meu look todo preto, e isso me deixava tão feliz quanto era possível em uma segunda de manhã.
Além do mais, eu odiava passar frio e, pelo o que via da previsão do tempo, parecia que o clima só pioraria ao longo da semana.
Fui até a estação do trem e, em quarenta minutos, cheguei ao trabalho. Era simplesmente mágico morar e trabalhar tão perto das estações. Pegava o trem lotado por causa da hora do rush? Pegava. Mas só de pensar no fato de levar menos de uma hora para fazer o trajeto casa-trabalho-casa tudo ficava mais confortável. Aquele projeto antigo de instaurar as linhas de trem em Joinville parecia utópico demais, e todos os habitantes da cidade achavam que jamais sairia do papel – então não era inesperado o fato de todos se impressionarem quando as obras começaram.
Entrei na porta destinada à empresa e vi, através do vidro da sala do Chefe, que Caleb e Jenny estavam recebendo um novo projeto. Mais um?, pensei enquanto lembrava da montanha de demandas com prazo para essa semana.
Sentei na minha mesa e liguei o computador. Abri a agenda eletrônica e coloquei minhas prioridades em execução. Se tinha uma coisa que odiava era entregar projetos atrasados. Por isso, os meus sempre tinham uma folga de pelo menos cinco dias antes do prazo para que desse tempo de fazer qualquer alteração necessária.
Os dois saíram da sala do Chefe, e Jenny veio sentar ao meu lado. Estava branca e seus braços balançavam enquanto ela olhava para os papéis em suas mãos.
— O que houve, Jenny?
— Projeto novo. Precisa ser entregue na sexta. Por isso o Chefe deu pra mim e Caleb.
— Precisa de ajuda? — ofereci, mesmo sabendo que minha semana estava da mesma forma que a passada: completamente tomada.
— Nem que eu quisesse, amiga. Mas obrigada. — Jenny tinha um sorriso pesaroso no rosto. Assenti e virei para meus próprios projetos.
Estávamos todos exaustos. Já tínhamos pedido para o Chefe contratar mais pessoas, mas ele se recusava. O lado bom era que ganhávamos comissão de pessoas jurídicas. Portanto, ultimamente, estava entrando uma grana boa.
Observei Caleb sair da sala alguns minutos depois de Jenny e rumar até sua mesa, em frente à minha. Até ia falar alguma coisa, mas ele parecia tão nervoso quanto minha colega, então achei melhor deixá-lo quieto.
Acho que fiquei tempo demais encarando-o, porque ele levantou o olhar e piscou para mim, sorrindo.
— Bom dia, Lily.
— Bom dia, Caleb.
E voltou-se para os relatórios que tinha em mãos, provavelmente as exigências
do cliente.

✨🌙

A semana passou tão rápido quanto o final de semana. Todos os dias, Caleb ficou até mais tarde. Todos os dias, fui embora sozinha.
Era normal fazer o trajeto da estação até em casa sem ninguém ao meu lado, mas não estava muito acostumada a pegar o trem sozinha. Vários dias, pela manhã, encontrava com Caleb, como se eu magicamente soubesse em qual vagão ele entraria, ou como se nossos encontros fossem programados. Surpresa: não eram. Mas depois de algumas semanas, no entanto, tudo se tornou normal, algo cotidiano, como chegar na padaria exatamente naquele horário e pegar os pães saindo do forno. Então, vínhamos conversando até a empresa ou, quando saíamos juntos, íamos conversando até ele descer na sua estação.
Na sexta à tarde, ele, Jenny e o Chefe tiveram uma reunião com os clientes. Tendo em vista a forma como os três saíram sorridentes de dentro da sala, acredito que os projetos foram bem aceitos. Minha amiga saiu correndo e se jogou na cadeira ao meu lado. Caleb fez o mesmo à minha frente.
— Nem acredito que acabou — suspirou, aliviada.
— Nem eu, não vi nem a cor da semana — reclamou ele, e eu dei risada.
A mesa em que trabalhávamos era grande, dividida por baias pequenas, só para termos nosso espaço pessoal e, ao mesmo tempo, fazer algumas reuniões em cima da hora, ou um brainstorm geral.
Nós cinco (seis, com Rogério) tínhamos um código de honra: ninguém ali era concorrente de ninguém. Todos éramos amigos e bons profissionais e, por isso, nos ajudávamos quando era preciso. Isso sempre funcionou muito bem para nós. Éramos uma boa equipe, e eu sorri com esse pensamento. Eles eram minha família.
Caleb se esticou na cadeira e ela entortou, se apoiando apenas nas duas pernas traseiras.
— Vai cair... — avisei.
Ele deu risada de mim quando voltou à posição normal.
— Não vou, não, mãe.
Revirei os olhos para ele. Se quer cair, que caia, pensei, irritada. Respirei
fundo e olhei no relógio do computador. Logo seriam seis horas, e eu me veria livre daquela baia.
Trabalhar com desenho era um dos meus maiores sonhos, e ele foi realizado, mas eu preferia quando fazia freelance. Se não fosse a necessidade de me sustentar e a instabilidade financeira que acompanhava esse tipo de serviço, com certeza voltaria a receber encomendas pela internet.
Mas nem sempre o mundo é do jeito que queremos, não é mesmo? — Lily!
Olhei para os lados, procurando quem me chamava. Era Alice.
— Chamou?
— Claro que chamei! Faz uns cinco minutos que estou falando e tu nem se mexe.
Sorri para ela.
— Não se preocupe, amiga... Só estava sonhando com o momento em que o relógio viraria para as seis da tarde de uma vez.
— Sonho realizado, então! — João apareceu na hora em que eu via o ponteiro maior chegar no número doze no relógio do escritório.
Desliguei o computador com gosto e descemos os cinco até o bar, rindo e conversando. Luiz já estava nos esperando com o cardápio na mão. Hoje parecia estar com um humor melhor.
— Tá melhor, Luiz? — caçoou Lice.
— Só um pouquinho, e ia agradecer se não ficassem gritando hoje. Assusta os clientes — ele explicou, com uma pitada ácida de escárnio em sua voz.
— Pode deixar — respondeu Jenny —, vou controlar essas duas matracas aqui.
Luiz agradeceu com um olhar de súplica. Eu dei risada. Sentamos em nossos lugares habituais e fizemos nossos pedidos.
Era o tipo de normalidade que me fazia bem. Eu não era como aquelas pessoas ávidas por mudar a rotina. Tudo no meu dia a dia me deixava feliz: os horários, as roupas e, principalmente, as saídas de sexta-feira com meus amigos.
Depois de muitas horas ali, Luiz apareceu e nos avisou que fechariam, mas ninguém queria ir embora de verdade. Várias vezes, já tinha acontecido de estendermos nosso happy hour na casa de alguém – o motivo de Caleb já conhecer a minha.
— A gente vai pra casa de quem hoje? — perguntou João.
— Minha irmã levou as amigas pra dormir lá em casa — Alice retrucou. Carina era uma fofura. Uma adorável menininha de dez anos que ainda não tinha entrado na fase chata da pré-adolescência.
— Eu moro com a minha mãe, então... — Jenny falou, se esquivando.
Revirei os olhos. João morava com a avó doente, e Caleb, em um apartamento tão pequeno que jamais caberiam todos. Ou seja, sobrou para mim de novo.
— Vamos lá pra casa — falei, já pegando minha bolsa e colocando no ombro.
Passamos em um mercadinho para comprar mais bebida e alguns salgadinhos e rumamos até a estação de trem.
Chegando lá, todos já se acomodaram, acostumados com o lugar. Rimos, comemos, conversamos, fizemos várias piadas e alguém deu a ideia de colocarmos um filme para assistir.
Aos poucos, a semana cansativa e a bebida começaram a fazer efeito, e cada um adormeceu em um canto. Jennifer apagou no chão, enrolada em uma coberta que improvisou como colchão. Caleb dormiu encostado no sofá, e achei a coisa mais fofa do mundo ver Alice adormecida no colo de João. Fiquei até com dó de acordá-los, mas sabia dos compromissos de todos, que sábado ainda era dia de trabalho para Jenny. Além disso, também sabia que a mãe de Alice e a avó de João ficariam preocupadas.
Cutuquei-os com cuidado. Jenny levantou devagar, e eu a vi sorrir ao olhar Alice e João. Chamei os dois; eles acordaram sobressaltados, confusos, e coraram instantaneamente quando viram a posição em que se encontravam. Caleb também despertou e começou a juntar as coisas sem falar muito com ninguém.
Os três moravam no mesmo bairro. Os únicos que viviam praticamente do outro lado da cidade éramos Caleb, em Nova Brasília, e eu, em Morro do Meio. Jenny, João e Alice pediram um táxi para Itaum e logo se foram. Perguntaram se Caleb queria ir junto, mas sabiam que ele morava na direção oposta.
Aquela máxima de oferecer por educação e recusar por educação. Eu entendia disso, era craque nesse tipo de interação social.
Ficamos parados no batente da porta, esperando nossos amigos irem embora. Aos poucos, percebi que o chão estava mais branco e que grandes nuvens de vapor saíam de nossas respirações. Olhei para cima para confirmar minhas suspeitas.
Gelo. Foram raras as vezes que vi neve efetivamente aqui em Joinville, mas as geadas eram cruéis, principalmente em um dos bairros mais frios da cidade, como era o caso de Morro do Meio. Tinha certeza de que, se o gelo continuasse daquele jeito, amanhã de manhã, acordaríamos com neve no chão.
Um tremor tomou conta de mim e abracei meu corpo. Essa noite com certeza seria mais gelada do que as outras.
Olhei para Caleb e percebi que ele estava com uma expressão inquieta no rosto geralmente sereno.
— Que foi? — perguntei, preocupada.
— Não tem mais trem a essa hora...
O entendimento tomou conta do meu corpo lentamente. Eu não poderia deixá-
lo na rua àquela hora da madrugada, não é?
— Dorme aqui de novo — sugeri, dando de ombros.
Ele ergueu os olhos.
— Não, eu não posso aceitar. Já fiquei aqui semana passada.
— Não tem com o que se preocupar, querido — falei, já o puxando para dentro
e fechando a porta. — Além do frio absurdo que está fazendo, tu sabe que, a essa hora, os táxis cobram mais caro. Não me incomoda em nada.
Caleb me olhou de forma enigmática, como se estivesse tentando resolver algum conflito interno. Mas pareceu ter se decidido quando balançou a cabeça e sorriu para mim.
— Acho que não tem problema, então.
Sorri de volta.
— Claro que não.
Fui pegar as roupas de cama para forrar o sofá, carregando um edredom a mais. Quando ele foi embora na semana passada, dizendo que o aquecedor tinha quebrado, bastou alguns tapas na parte de cima para voltar a funcionar, e assim ele se manteve durante a semana. Economizou-me uma quantia razoável de dinheiro da qual eu não poderia me dispor a gastar somente com aquela peça jurássica que fingia esquentar minha casa.
Quando voltei, Caleb me aguardava com a garrafa de vinho que tinha ficado inacabada no balcão de madeira e duas taças. Apoiei a roupa de cama no sofá e me virei para ele, erguendo a sobrancelha.
— Não estou com sono. Por que não me acompanha em uma última taça de vinho?
Senti meu rosto corar, mas concordei. A Paula, do orfanato, era hippie e dizia que as pessoas emanavam energia. Nosso instinto fazia o trabalho de definir quais seriam boas para nós.
Naquele momento, conseguia sentir que Caleb emanava uma energia magnética, porque não era capaz de me afastar, não podia desviar o olhar do dele e, por mais envergonhada que ficasse, não conseguia impedir minha mente de projetar imagens de seus lábios nos meus, de suas mãos em mim.
Meu corpo começou a esquentar e atribuí o calor ao vinho que tomava, sentada em frente a Caleb no sofá. Não sei se ele percebeu que eu estava estranhamente quieta, mas começou a puxar assuntos aleatórios que soltavam meu riso de forma fácil. Mais uma vez, minha consciência brigava com o coração. Decidi culpar a bebida de novo, apesar de saber que a meia taça de vinho não era responsável por absolutamente nada – além de me impedir de fazer algumas besteiras que rondavam minha mente.
Enquanto Caleb me contava detalhes engraçados de um projeto que tinha dado errado, comecei a notar alguns pontos mais claros em seus olhos castanhos e o cabelo rebelde que pendia em sua testa, completamente solto do gel. Sua camiseta de mangas compridas estava colada em seu peito, e eu nunca tinha reparado em como ele era musculoso.
Meu Deus, Lily, para de ser maluca! Ele é o seu amigo, Caleb. Amigo de anos, colega de trabalho. O que te ajuda com seus projetos, que te ensinou a mexer na versão atualizada do Illustrator e faz piadas infames. Aquele que te acompanha em casa para te proteger e...
...aquele que tem feito seu coração disparar com mais frequência do que seria recomendado.
Mas nem meu cérebro estava me ajudando hoje, viu?
Tentei desviar minha mente daqueles recém-descobertos detalhes, mas me peguei analisando o formato de seus lábios cheios. Sem perceber, me aproximei mais dele. Uma ponta de remorso me atingiu por não estar mais prestando atenção no que ele dizia. Mesmo assim, senti sua mão em meu rosto novamente, como na semana passada.
Caleb estava perto, muito perto. Seus dedos percorreram o contorno da minha mandíbula.
— Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo — ele sussurrou, a centímetros dos meus lábios, e senti os pelos da minha nuca se arrepiarem.
Sequei as palmas das mãos suadas na minha calça e engoli em seco. Caleb passou o polegar pelo meu lábio inferior e murmurou um pedido suplicante:
— Só me fala boa noite e vai dormir, por favor.
Meu coração batia tão forte que eu o sentia martelar os ouvidos. Seu perfume cítrico me atingiu como um raio mais uma vez. Balancei a cabeça e levantei do sofá, com dificuldade de manter as pernas retas: meus joelhos pareciam feitos de geleia.
Assenti e me afastei dele, respirando fundo. — Boa noite, querido.

Boa Noite, Querido (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora