3 - Espiando entre dimensões

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    991 palavras.

   —Não acredito que estamos na escola no feriado! – Hugo lamenta, pela enésima vez naquele dia.

   —A fama exige um preço Daniel Sam! – Liz lhe dá um sorriso, assim que os três pulam o muro dos fundos.

   —Karate Kid agora não, pelo amor de Deus! – Mari ri, um pouco ofegante, devido ao salto.

   Ela tinha a graciosidade de um touro numa loja de porcelana.

   O Santa Elizabeth era a mais antiga escola de Porto Salgado, erguida um século e meio atrás, por colonos ingleses e espanhóis. O prédio era velho e antiquado, do tipo que resiste ao ao avanço do tempo sem se queixar. Costumava ser uma instituição destinada apenas aos filhos da elite, até ser tombada como patrimônio cultural público e convertida em escola municipal.

   Não era um lugarzinho muito agradável, se quiser saber...

   —Anda logo, antes que o zelador pegue a gente aqui! – Mari sussurrou, vigiando a saída.

   —Ainda bem que não instalaram câmeras de segurança... – Liz comentou, enquanto corria o mais rápido possível. – Não posso pegar suspensão de novo.

   Mari e Hugo trocaram um riso abafado, se recordando do motivo que levou Liz a ganhar três dias de suspensão, ao colocar uma caixa com baratas no armário da sua professora de história. Tudo isso porque ela considerava Liz era uma jovem vulgar e que deveria se vestir mais "adequadamente".

   Um verdadeiro descaso!

   —Tudo certo... Se a Mendoza estiver certa, o túnel deve estar dentro do banheiro feminino, no laboratório desativado. – Mari volta a falar, já com o velho diário em mãos.

   —E lá se vai a minha masculinidade! – Hugo suspira dramaticamente. Algo que fez as garotas rirem.

   Eufóricos por conta da aventura iminente, os três cortam por sobre corredores ermos, portas de madeira e salas vazias, quando finalmente se encontram no setor de salas desativadas, ou seja, aquelas que precisavam urgentemente de uma reforma. Antes que alguém fosse atingido por um pedaço do teto, ou terminasse eletrocutado por algum fio desencapado.

   —Deve ser aqui! – Mari mal continha a empolgação. – Estão vendo a rachadura? É igual a do desenho...

   Um extenso rasgo escorria pela latrina lisa, longo o bastante para ser notado. O som que vinha detrás dele era oco, dissonante e baixo, como se as camadas de cimento e argamassa não estivessem unidas aos tijolos empilhados, para assim formarem um elo denso e forte.

   —Tem certeza de que isso é certo? – Hugo questionou.

   —Quem não arrisca não petisca! – Mari respondeu, arrancando os azulejos com as próprias mãos.

   Certa de que estava fazendo uma grande descoberta...

   Aos poucos, o que não passava de uma simples rachadura se tornou um imenso buraco, aberto no chão do banheiro feminino, sem a menor dificuldade. Hesitante, Hugo arrancou as ripas de madeira da soleira e expôs o famigerado túnel, escancarado como a bocarra de uma criatura faminta. Um odor rançoso vinha lá do fundo, aliado ao som de gotas caindo e o que pareceu ser o chiado frenético de ratos brigando.

   —A velha maluca estava certa! – Liz diz, embasbacada. – Tem mesmo um último túnel.

   Os três se encaram, mal acreditando no que seus olhos estavam vendo. Era insano considerar que um buraco como aquele, depois de cinquenta anos na obscuridade, ainda estivesse de pé.

   —Vamos entrar, tirar algumas selfies e vazar. Falou?

   —Certo Hugo, nós prometemos. – Mari olhou de soslaio para Liz, não antes de lhe dar uma piscadela atrevida.

   O chão tremeu, assim que três jovens pularam para dentro das paredes apertadas, cavadas na pedra bruta, durante meses de trabalho clandestino. O túnel cheirava a lodo, umidade e esgoto, o tipo de combo triplo que faria estômagos se revirar em náuseas. Mas que acrescentava mais peso à atmosfera densa e magnética daquele lugar, como se houvesse algo no fim do caminho, esperando para ser notado.

   —O que é aquilo? – Hugo apontou a lanterna para um ponto mais profundo, onde uma estranha luz esverdeada chegava aos seus olhos.

   —Podem ser gases... – Liz sugeriu. – eles costumam se acumular em cavernas.

   O brilho se intensificou ainda mais, passando de verde musgo para amarelo canário, azul turquesa para violeta e por fim, verde novamente. Era hipnotizante olhar para aquelas luzes e, antes mesmo que pudessem se dar conta disso, os jovens se lançaram ao seu encontro. Cada vez mais fundo, mais fundo, mais fundo...

   Até que finalmente o encontraram.

   Repentinamente, o caminho sufocante se abriu numa caverna, grande o bastante para comportar Porto Salgado inteira. As rochas magmáticas ali eram lisas como vidro, negras como obsidiana e tão brilhantes quanto o mais rico diamante. Luzes e vapor multicoloridos dançavam pelo ar, formando silhuetas etéreas e intocáveis, refazendo-se e desfazendo-se a medida que suas formas se transformavam. O tempo e o espaço pouco importavam, assim como tamanho era o deslumbramento de três jovens, mirando aquela aurora boreal de sensações e cores, mais irreal do que qualquer sonho que já ousaram ter. 

   No entanto, por mais que tal espetáculo fosse magnífico de se admirar, existia outra coisa dentro da caverna, digna de ainda mais atenção. Pois, no alto, brotando sobre a rocha nua e estalactites de ouro puro, jazia um gigantesco olho...

   Uma orbe imensa, viva como qualquer outra sombra na cratera, vermelha como o sangue que corre pelas veias e tão aterradora quanto a certeza da morte conhecida. A terra formava sua grande pálpebra, de um só olho, uma só majestade, uma só estranheza, em sua sublime presença e divindade.

   Mari, Hugo e Liz não conseguiram desviar o olhar, insignificantes perante tamanha grandeza. Intoxicados perante tanta glória. Hipnotizados, diante de tanto horror. O globo era magnífico e abrasador ao mesmo tempo.

   A esclera vasta, a íris profunda, pupilas se dilatando como flores ao desabrochar. Pedra, carne, ouro, poeira, fumaça, luz e pó. Unidos na sinfonia do grotesco, do insano e do inacreditável...

   Seria arte? Magia? Horror? Encanto? Ou uma maldição?

   Exótico demais para ser analisado com clareza.

   Sob o chão, meros mortais não tinham certeza se ainda eram reais, ou mero fruto de um delírio coletivo.

O Olho De Sítaro - (Conto) Onde histórias criam vida. Descubra agora