2 - Um diário empoeirado

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   1017 palavras.

   —Isso não é tão ruim quanto eu imaginei... – Liz concluiu, assim que defrontou-se com a sala de estar do casarão.

   Meia hora depois de armar aquele plano improvisado e meio estúpido, Mari, Hugo e Liz se encontravam no topo da colina Dares, mirando a cerca de madeira podre com um certo ar de desconfiança. A casa ainda estava lá, intocada, do mesmo jeito que sua antiga proprietária havia deixado. Teria sido um monumento suntuoso e rico no passado, mas depois de décadas sem uma reforma adequada, suas exuberância entrara em um ciclo doloroso de decadência. As telhas estavam caindo, a pintura descascando, os arabescos de gesso se perderam completamente, parte da laje jazia exposta, o quintal era puro descuido e a cerca já não tinha mais nenhuma serventia.

   Desconfiados, mas não menos curiosos, os três jovens trataram de se lançar pela grama alta, vencendo o terreno, até dar de cara com a porta de entrada. Levemente torta, pois tinha sido arrombada pelos paramédicos, na noite em que Mirella Mendoza sofreu o acidente.

   —Pelo visto a louca era só uma velha comum... – Mari respondeu ao comentário de Liz. – Não me surpreenderia se ela tivesse uns mil gatos.

   —Ufa... – Hugo suspirou. – Nunca estive tão feliz em sentir o cheiro de naftalina em toda a minha vida!

   —Vai ver é isso não é naftalina Hugo, – Liz deu uma risadinha. – talvez seja formol... Você sabe, aquilo que usam para preservar cadáveres!

   Hugo engoliu em seco.

   —Deixa de ser mentirosa! – Disse, trêmulo. – Tenho certeza de que isso é naftalina. Minha avó coloca essa coisa nas roupas do meu avô.

   Liz continuou rindo...

   Embora o palacete estivesse ruindo por fora, do lado de dentro, ele não envelheceu um dia sequer. O papel de parede era engordurado e cafona, o chão limpo e as poltronas bem conservadas. Distribuídas entre almofadas largas e suas estampas de flores silvestres. Uma mesa de cabeceira torta saudou os adolescentes, onde um lustroso e excêntrico telefone vermelho imperava, orgulhosamente. Pilhas e pilhas de revistas se amontoam dentro de um corredor apertado, dividindo o espaço com caixas de papelão e molduras lustrosas, nos mais diversos tamanhos e formatos. Algumas exibiam notícias do jornal local, outras retratos de três pessoas diferentes e ainda tinham aquelas que comportavam centenas de borboletas mortas. Catalogadas de acordo com a espécie e o tamanho.

   —Será que a Mendoza era taxidermista? – Mari perguntou, com o celular em mãos, registrando tudo.

   —Acho que não. – Hugo discorda, um pouco mais relaxado. – Ou então teríamos um monte de bichos empalhados por aqui... Mas só vejo borboletas. É uma coleção antiga, algumas dessas espécies não existem mais na região.

   —Nerdola! – Liz desdenhou, socando o ombro do garoto.

   Hugo apenas lhe mostrou o dedo médio, em resposta.

   Os três continuaram vasculhando os cômodos por o que pareceu ser horas e horas. A casa era um lugar curioso, cheio de relíquias do império Maia, fotografias e edições muito antigas do jornal local. Todas elas evidenciando uma tempestade, que acontecia em Porto Salgado uma vez a cada vinte anos. A coisa era sempre a mesma. Um furacão aparecia, arrebentava com tudo, matava centenas de pessoas e depois desaparecia, sem deixar um rastro sequer.

   —Pessoal, olha só isso aqui... – Mari chamou a atenção dos seus amigos, enquanto mexiam no antigo quarto da senhora Mendoza. – Acho que é um diário.

   Os três se reuniram no entorno de um livro, forjado em couro e folhas grossas, que lhe conferiam um peso considerável. Dentro dele, se acumulavam uma boa quantidade de desenhos indecifráveis, todos contendo a presença sombria e constante de um olho. Uma única órbita, escura e imensa, ora feita com capricho e esmero, ora feita aos rabiscos e borrões.

   —Ela escreveu sobre os túneis de escoamento debaixo da cidade... – Liz diz, depois de analisar as notas desorganizadas, feitas sem o menor nexo.

   —Não tem como ela saber onde estão, – Hugo se espanta. – tipo, tem mais de cem anos que eles foram lacrados.

   —Nem todos eles... – Mari aponta para um ponto da página, onde Mendoza havia desenhado o mapa inteiro da cidade. Enumerando pontos, marcados com um "x" em vermelho.

   Menos num deles.

   —Mas isso fica...

   —No Santa Elizabeth, onde a gente estuda. – Mari concluiu, boquiaberta. – Foi cavado por aqueles caras do presídio lembra? Aquele que pegou fogo cinquenta anos atrás.

   —Dizem que a grana roubada ainda está lá dentro. – Liz pontua – A fumaça do incêndio os matou, quando estavam tentando sair.

   —E como a Mendoza sabia de uma coisa dessas? – Hugo seguiu perguntando, cada vez mais aterrorizado.

   —Talvez ela fosse algum tipo de historiadora, ou sei lá...

   —Me diz que vocês vão deixar esse negócio de túnel para lá? – Hugo choraminga, ciente de que Mari não largaria aquele osso assim tão fácil.

   —Você não pode estar falando sério?! – Ela se exalta. – Se a gente descobrir um túnel no Santa Elizabeth, podemos até aparecer no telejornal local!

   —Dane-se o telejornal! – Hugo suspira. – Você quer entrar de cabeça dentro de um buraco perigoso... Quem sabe que tipo de coisa pode estar lá dentro?

   —Deixa de ser frouxo Hugo, até parece que nós nunca entramos numa mina abandonada antes! – Liz intervém. – E não tinha nada lá, só ratos.

   —Só ratos, só ratos... – Hugo repete, afinando a voz. – Eu quase morri do coração quando a gente se perdeu!

   —Mas conseguimos sair inteiros no final...

   —Isso não anula o fato de que eu quase morri do coração!

   —Mas você é muito fro...

   —Hugo, tudo bem! – Mari interrompe, antes que os três começassem a brigar. – Se você não quer ir, nós não vamos, tá legal... Tem razão, é perigoso demais. Não quero que ninguém se machuque.

   —Mas... mas... – Hugo murmura, extremamente surpreso por sua opinião estar sendo considerada.

   Ele pondera por um breve instante. Hugo não gostava de ter tanto medo das coisas, e muitas vezes se forçava a ser corajoso apenas para agradar suas amigas. Apesar de sempre o colocar em maus lençóis, elas eram aquelas com quem Hugo sempre pôde contar.

   Independentemente do problema.

   —Okay, você venceu, eu estou dentro!

   —Sabia que iriam topar. – Mari enlaçou Liz com um braço e Hugo com o outro. – Amo vocês!

O Olho De Sítaro - (Conto) Onde histórias criam vida. Descubra agora