1 - A casa no alto da colina

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   973 palavras.

   Mari acordou cedo aquela manhã. Não que acordar cedo fosse o seu ponto forte, muito pelo contrário, eu diria. Estava eufórica desde a semana passada, quando a possibilidade de explorar um casarão abandonado no fim da cidade caiu de bandeja no seu colo. E, embora a maioria das pessoas tenha aversão a lugares escuros e tenebrosos, Mari era do tipo que corria ao encontro deles, para o desgosto de Hugo, um dos membro da sua gangue de enxeridos.

   Invadir cemitérios e propriedades privadas até poderia ser crime, mas Mari nunca foi pega...

   Já sem sombra de sonolência, ela se levantou da sua cama, tomou um banho e tratou de vestir sua usual calça jeans folgada, tênis amarelo mostarda e a camiseta que ganhara da mãe, meses antes do falecimento dela. Usava a peça como uma forma de se lembrar do carinho materno, é claro, mas também porque era muito confortável.

   —Hoje não é dia para chorar Mariana Alberta! – Disse para si mesma, imitando a voz severa da progenitora, enquanto amarrava as mechas rosadas do cabelo ondulado. – Estou prestes a descobrir o que a velha Mendoza tanto esconde naquela casa.

   Mirella Francisca Albuquerque e Mendoza era a antiga proprietária do dito casarão em questão. Vivendo nele por toda a sua vida, até que sofreu um grave acidente e terminou por ser internada numa casa de repouso, onde vive, desde então. Todo mundo em Porto Salgado dizia que a velha era completamente louca, do tipo que grita com as pessoas quando estão passando pela rua, ou daquelas que falam sozinhas constantemente até altas horas da madrugada. Mari mesmo ficou sabendo que Guilhermo, o filho do padeiro, tomara um banho de urina, ao invadir o quintal mal cuidado e se esgueirar pelas janelas do andar térreo, sendo surpreendido por um penico bem cheio, jogado contra a sua cara de bolacha.

   O pobre coitado contraiu o apelido de "João Mijão" desde o ocorrido...

   No entanto, por mais que a excentricidade da velha Mendoza intrigasse muita gente, o que ela escondia dentro de casa era o verdadeiro motivo de fascínio entre todos os adolescentes em Porto Salgado. Nunca ninguém conseguiu se aproximar o bastante das janelas ou da porta, sem ser enxotado à gritos, antes mesmo de pensar em tocar a campainha. Até mesmo Mari e seus amigos Hugo e Liz já haviam tentado, sem êxito, como já era de se esperar.

   Mas, agora que a velha foi forçada a sair da casa, seus segredos eram um livro aberto, pronto para ser lido.

   Sentido uma onda nauseante de eletricidade percorrer o seu corpo, Mari se jogou sobre sua cadeira com estampa de gatinhos, abriu o notebook e tratou de contatar os seus fiéis escudeiros, via Facetime. A tela piscou em azul por alguns instantes, até que a silhueta de um garoto e uma garota surgiram na tela. Ambos bastante ocupados, aparentemente...

   Mari abriu um sorriso.

   —Pessoal, adivinha!

   —Minha resposta é não! – Hugo saltou, antes mesmo que Mari ou Liz pudessem dizer alguma coisa. – Eu conheço essa cara Mariana, você está tramando alguma coisa perigosa!

   —Como você é frouxo garoto... – Liz desdenhou, com um sorriso. – Anda Mari, desembucha.

   Hugo apertou os olhos, numa ameaça clara à Liz. Ele estava coberto por manchas de tinta, nos mais variados tons de azul, laranja e amarelo. Resultado da sua falha tentativa de reproduzir "A Noite Estrelada" do Van Gogh, na parede do seu quarto. O cabelo rebelde escapava pela touca verde oliva que usava e se perdia pela testa morena, formando cachos disformes e bagunçados, mas estranhamente compatíveis com sua camiseta flanelada vermelha e a regata preta, de seu costume vestir por baixo da outra.

   Liz era muito bonita, isso ninguém podia negar. Tinha um grande sorriso radiante, cabelos castanhos densos e volumosos, pele escura, postura vigilante e um olhar amendoado tão redondo quanto a lua cheia. Era um pouco fria, às vezes, principalmente com os garotos com quem costumava sair, mas, sem contar este detalhe, era um poço de doçura, principalmente com Azazel, seu gato de estimação.

   Nome incomum, é eu sei.

   —Então... – Mari continuou. – É questão de tempo até todo mundo invadir a casa da Velha Mendoza... Agora que ela está fora.

   Hugo fez um muxoxo de desaprovação, enquanto Liz apenas riu.

   —Deixa eu adivinhar, você quer ir lá e mexer nas coisas da velha?! – o garoto supôs, quase certo do que havia dito.

   —Exato! – Mari bateu palmas. – Só precisamos fazer isso logo. Deixar nossa marca como os "primeiros a descobrir o que aquela velha tanto esconde". E postar tudo no YouTube, só pra esfregar na cara do Babaca do Júlio Valdez!

   —Ah, até que ele é bonitinho... – Liz concluiu, enquanto tingia as unhas.

   —Urgh! Bonitinho pra você que tem dedo podre! – Hugo discordou, com veemência.

   Liz deu de ombros, sem se importar. 

   —Bonitinho porém idiota. – Mari acrescentou, um pouco corada. – Enfim, isso não vem ao caso... Vocês topam ou não?

   Silêncio...

   —Você sabe que eu estou dentro. – Liz fitou Mari, com um olhar travesso e um sorrisinho nos lábios. 

   —E você Hugo?

   O garoto se manteve em silêncio, olhando para o chão. Desde muito pequeno, Mari o arrastou para esse tipo de situação mais vezes do que se possa imaginar. Mesmo sabendo que ele tinha pavor de aranhas e todo o tipo de bizarrice que ela e Liz tanto amam. Entretanto, apesar de todos os pesares, Hugo também era adolescente, e tal qual os membros da sua espécie, ele não podia resistir a tentação de invadir uma casa abandonada, só para saber o que tem dentro.

   "Vai ser tranquilo, a velha Mendoza não é uma psicopata... Eu acho." – Hugo pensou, tentando se tranquilizar.

   —Beleza, eu topo! – Liz e Mari gritaram de alegria. – Mas, se a polícia aparecer, deixo vocês duas para trás!

   –Fechado! – Mari sorriu ainda mais. – Me encontrem na colina Dares em meia hora. E não se atrasem! 

O Olho De Sítaro - (Conto) Onde histórias criam vida. Descubra agora