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Atordoado, esse adjetivo era o que melhor o descrevia. Sequer se lembrava de como havia deixado sua família para trás, ou de como havia entrado no apartamento que conhecia tão bem. Fotografias e quatros se encontravam quebrados no chão, assim como algumas estátuas caídas. As obras de arte de alto valor que a fêmea tanto estimava se encontravam destruídas. A bancada de mármore estava em destroços, assim como a mesa de ébano e o estofado de veludo próximo a lareira.

Seu sangue gelou.

Mas então, antes que pudesse ter qualquer reação, como se assistisse o tempo se reverter, viu cada um dos cacos espalhados pelo chão se reunir em montes, antes de voltarem à sua essência original, como se nunca tivessem se partido. Viu cada quadro, cada estátua, se reconstruir bem diante de seus olhos. E em questão de instantes, o apartamento estava como se recordava: limpo, organizado, elegante e com um magnífico cheiro de caramelo e café.

⸺ O que faz aqui? ⸺ a voz hipnotizante e calma soou atrás do illyriano, o fazendo se virar brutamente.

Lá estava ela, escorada no batente da porta que levava para seu salão de música. Sua adorada musa, vestindo apenas uma camisola de seda branca. Sua maquiagem borrada, as trilhas de lágrimas em suas bochechas, seu penteado estava se desfazendo aos poucos, os logos fios negros caindo em seus ombros. Suas feições neutras e calmas em contradição com sua aparência e aura caótica, assim como seu lar minutos antes.

Em questão de instantes o espião atravessou a sala, agarrando a fêmea pelos ombros e enterrando seu rosto em seu pescoço, o nariz a acariciando a pele sensível atrás da orelha visivelmente feérica, sentindo o cheiro de seus cabelos.

Seus olhos rubis analisaram bem o macho a sua frente, o observou cautelosamente quando este espalmou sua mão deformada sobre o ventre da fêmea. Apenas suas respirações e o ruído do relógio de pêndulo quebravam o denso silêncio do apartamento.

A grã feérica cravou suas unhas no antebraço do macho, sentindo-o afincar seus dentes na pele fina de seus pescoço, beijando-a e lambendo-a em seguida. As sombras dançavam ao seus pés, subindo lentamente por suas panturrilhas e coxas.

Trêmulo, ousou puxar o delicado e etéreo fio que se estendia de sua alma até a da fêmea, sentindo-a estremecer em seus braços. Seu peito inflou em um grunhido quase bestial, as sombras engolindo o apartamento em  absoluto breu. Seus dedos afundaram na lombar da mais nova, a trazendo para tão perto de si que sentia como se pudesse fundir os dois corpos.

⸺ Você não vai a lugar algum ⸺ ofegou, segurando os cabelos dela entre seus dedos, olhando em seus olhos de maneira quase violenta. ⸺ Pode jogar os seus jogos o quanto quiser, brinque com todos como se fossem peças em seu tabuleiro de xadrez. No final de tudo você irá voltar para mim, irá gerar os meus filhos e será a minha mulher.

As imponentes asas do macho se fecharam ao redor de ambos os corpos, a sombras dançando como arabescos ao ar. A feérica cravou suas unhas de modo violento no pescoço do illyriano, ele por sua vez apenas segurou seus cabelos com mais força, a obrigando olhar em seus olhos.

A tensão era quase sólida, ela queria quebrar o mundo ao seu redor. Ele queria gritar com ela por ter escondido tudo o que era dele por direito. Em questões de segundos a grã feérica estava imobilizada nos braços do illyriano, que a beijava com toda a sua devoção.

⸺ Você é minha, Verena. Pode gritar, chorar, transformar esse apartamento em pó. Nada vai mudar isso. E o bebê em seu ventre, também é meu. Vocês dois são meus, e eu esperei tempo de mais para finalmente tê-los ao meu alcance, e não só como um sonho lúcido, para permitir a hipótese de perdê-los.

A jovem feérica tinha seus olhos rubros presos no macho a sua frente, sua mente nublada. As outras peças do tabuleiro estavam em segundo plano, afogados, xeque-mate. Ela ganhou.

⸺ Espero que esteja ciente das suas ações, Mestre Espião. Não há retrocessos.

⸺ Ótimo.


Icon - AzrielOnde histórias criam vida. Descubra agora