Dois

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Aline.

— Eu não estou acreditando que você quer jogar tudo no lixo por causa de pica – ela reclamou pela enésima vez, mas nenhuma delas tinha sido tão explícita.

— Naju! – eu reclamei, mesmo que a declaração tivesse sido feita exclusivamente para mim, através dos meus AirPods.

Eu andava na rua e, por todo o caminho de volta ao hotel, não resistia em pensar que alguém podia escutar.

— Eu não passei todo ensino médio e faculdade ouvindo você reclamar que nunca era suficiente para Inglaterra para, quando você se tornar, desperdiçar a chance – seu sermão continuava. – E por causa de quê? Isso mesmo que você ouviu. Pica.

A situação seria cômica se não fosse trágica. Eu preferia pensar que o sermão não era merecido, porque o motivo pelo qual ela o fazia não era verdade. Eu não necessariamente recusaria uma proposta por conta disso.

— Não sei o porquê está insinuando isso – falo mais baixo, e nem é porque dúzias de pessoas passam por cima à tempo inteiro.

— Não sabe, é? – ela entendeu como se me estivesse fazendo de sonsa. – Você 'tá o quê? Esperando que te liguem da Espanha também e te dêem a oportunidade de mestrar lá?

— Eu vou desligar na sua cara – ameacei.

— Aline, eu sou a última pessoa que diria isso, mas 'tá na hora de superar – e era bem óbvio a quê ele se referia. – Como eu disse, você ficou enchendo meu saco e não foi pouco, 'pra começar a vacilar porque tem medo.

Eu respirei fundo. Talvez ela não estivesse tão errada.

— Eu não tenho medo – hesitei.

— Ah, mas tem sim – o tom risonho e sarcástico quase me fez interromper a chamada. – Você tem medo de aceitar a proposta porque, quando estiver lá, vai ter uma facilidade enorme 'pra sentar nele de novo.

— Por favor, não fala da gente como se tivesse sido só sexo.

— Você entendeu que não foi isso que quis insinuar – Naju emendou. – Enquanto você 'tá no Brasil é fácil não se malear e querer seguir em frente, mas no mesmo lugar fica difícil, não é?

Aos poucos, eu me aproximava de onde estava hospedada, observando a pequena quantidade de pessoas que se amontoava à entrada, provavelmente sendo impedida de entrar.

Claro que não se compararia ao hotel onde os jogadores da seleção estariam instalados, mas a comoção já era alarmante para um lugar onde apenas os familiares e próximos estariam.

— Eu tenho que desligar – avisei, ajeitando os sacos de compras que tinha feito mais cedo, com o auxílio de quem estava em ligação comigo naquele momento.

— Muito conveniente.

— Se eu quisesse mesmo desligar na tua cara, já teria feito isso – entendi o que seu tom queria demonstrar. – Estou chegando no hotel e preciso começar a ver as coisas 'pro jantar.

Ao mesmo tempo que dizia, me imaginava no vestido preto, longo e justo que me tinha comprado. Eu raramente usava vestidos mas, segundo ela, a ocasião exigia. Não só um vestido, como precisamente da cor preta.

— Lembre-se, você... –

Tem até dois dias depois da final da Copa do Mundo – completei, referenciando a moral que toda aquela conversa após o shopping tinha gerado. – Já entendi.

— Beijos, amor – ela se despediu.

— Beijo.

Mal desliguei e já passei pela entrada, após confirmar ao segurança que eu estava hospedada lá. Adentrando o espaço, percebi as dezenas de pessoas também amontoadas na recepção. Não necessariamente grudadas umas às outras, mas que evidenciavam um movimento.

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