Black.

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Mortícia Addams respirava fundo enquanto caminhava até quarto de sua filha mais velha, Wandinha Addams, que aos 5 anos foi diagnosticada com autismo. A menina nasceu desacordada vítima de uma paralisia cerebral, teve que ser alimentada por meio de alimentação parenteral - através de sua veia - e só foi para os braços de sua mãe após vários dias entubada. Mortícia sempre culpava todos os profissionais que tiveram acesso total aos exames e sessões relacionadas à saúde de sua filha e mesmo assim não foram capazes de perceber que havia algo de errado com ela, sempre diziam que suas atitudes nada comum para uma criança eram decorrentes da paralisia. Por um tempo chegou a pensar que não tivesse jeito para ser mãe e que deveria doar sua menina. Wandinha não falava quase nada; houve uma época em que não deixava que sua própria mãe chegasse perto dela e tinha crises de choro; em comemorações de família se irritava com todo o barulho e não se enturmava com as crianças e isso incluía seu próprio irmão mais novo; e toda vez que alguém não entendia a sua linguagem - devido a sua dificuldade - ela se mordia a ponto de se machucar.
Demorou tempo para que algum profissional desse a resposta que seus pais sabiam que teria mas que não tinham noção do que seria.
Wandinha não gostava de bonecas; carrinhos; bolas; bonecos de super-heróis; parques; espadas de plástico; casinhas para crianças; preferia legos e tintas de vários tons de preto.
Ela também não gostava de como os adolescentes da sua idade usavam cores tão chamativas; tiaras; maquiagem; vestidos extravagantes e com decotes, que na opinião dela era um exagero; preferia o preto e uma roupa básica que tampasse todo o seu corpo.
Há 16 anos ela vivia no próprio mundo e gostava disso. Ficava 24h em sua casa e nas férias ia para a casa de seu Tio Chico. De vez em quando se arriscava a acompanhar sua mãe nas compras, mas isso durava 5 minutos pois se arrependia devido ao local ser movimentado e acabava esperando-a no carro. Por mais que seus pais não soubessem, de vez em quando surgia um interesse em saber como era ir à escola. Ela não sabia o que era e continuaria não sabendo por bastante tempo se não tivesse escutado por acaso uma conversa de seu Tio Chico com sua mãe, onde ele cobrava a ela uma chance na sua ideia de matricular a menina em uma escola pra que ela se enturmasse. A princípio ela não entendeu mas resolveu não perguntar a nenhum deles, pela primeira vez assumiu o controle de mais uma de suas dúvidas e procurou no dicionário o que significava a palavra que havia escutado: escola. Desde que foi diagnosticada, Wandinha passou a receber aula em casa e o professor era o seu próprio pai. Ela gostava de Artes e passava horas pintando com diferentes tons de preto e cinza, mas para ele isso era uma besteira então no tempo vago que estava estudando acabava por se empenhar em matemática já que era a matéria que seu pai mais fazia questão de ensiná-la.

Quando bateu na porta, Mortícia não recebeu nenhuma palavra permitindo sua entrada de imediato mas ao insistir recebeu um bufo como resposta e entrou no quarto.
Olhou ao redor e notou sua filha de costas para ela com uma postura impecável, sentada em um mini banco enquanto tinha suas mãos trabalhando em um quadro cuja a cor preta se destacava.

— O jantar está pronto, querida. Dê uma pausa e venha se juntar com sua família. - disse cuidadosamente enquanto se aproximava.
A menina não disse nada e continuou do jeito que estava, desviando seus olhos apenas para a tela e a tinta preta em suas mãos.
— É... eu fiz a sua comida favorita. Por favor, Wandinha, prometo deixar você dormir um pouco mais tarde para terminar mais uma de suas telas. - insistiu.
Após escutar isso, a menina largou a tinta e o pincel, descansou os braços e encarou a tela à sua frente por um minuto. Levantou-se e encarou sua mãe, que estendeu a sua mão e deu um sorriso fraco. Wandinha parecia pensar mas juntou sua mão com a de sua mãe e a seguiu para a sala de jantar.

Enquanto seu irmão mais novo tagarelava sobre o quanto queria que seu aniversário chegasse logo para fechar um quarteirão da rua com sua festa, Wandinha permanecia quieta encarando a comida desejando que ele se engasgasse com o pedaço de carne que mastigava pois só assim pra ele calar a boca. Sua mãe pareceu notar a sua irritação e rapidamente disse:
— Pugsley, terá a festa que quiser e acho que fechar um quarteirão é pouco, fecharemos a vizinhança. - o menino que tinha a boca suja de molho e com um dente faltando abre um sorriso. - Mas agora coma sua comida em silêncio.
O menino concordou com a cabeça e a obedeceu, a mãe sorriu e recebeu o olhar de Wandinha seguido de um suspiro calmo como agradecimento.
— Está bem, querida? Não saiu do quarto hoje, passou o dia trancada lá e não quis comer de manhã. - encarava Wandinha preocupado, isso havia acontecido outras vezes mas a menina sempre mudava seu humor ao decorrer do dia porém esse não foi o caso de hoje. - Seria bom se ficasse um pouco lá fora, talvez no jardim ou se preferir passar um tempo com seu irmão. - seu pai a olhou.
Ela se manteve calada, apenas fincou o garfo no pedaço de bife bem passado e mastigou. Após isso, levantou-se e virou-se pra sua mãe.
— 25 mi-minutos. - disse com dificuldade se referindo a promessa da sua mãe de deixá-la dormir um pouco mais tarde para finalizar sua obra que foi interrompida, não esperou a resposta e foi para o seu quarto sem ao menos dar boa noite.

Enquanto pintava, notou um movimento na rua e resolveu olhar pela janela por pura curiosidade. Ao olhar pra baixo, viu que era um garoto com cabelos grandes na altura de seus ombros, sentado no passeio de sua casa enquanto mexia em algo brilhoso, um celular. Sua família nunca havia deixado ela ter um mas as vezes gostaria só por curiosidade. Sempre que pensava nisso se questionava se era privada de muitas coisas por acharem que ela era burra mas tirava esse pensamento de sua cabeça e repetia que: "ter um celular não era uma necessidade", sequer tinha amigos, iria falar com quem?
Observou o garoto por mais uns minutos ou talvez só continuou ali por estar perdida em seus pensamentos que foram interrompidos quando espirrou repentinamente oque fez com que ele se vira-se pra trás no mesmo instante.
— Porra? - gritou com os olhos arregalados quando direcionou seu olhar a menina que o encarava assustada e rapidamente tampou os ouvidos devido ao grito. - Quê? Porque tampou os ouvidos? - disse sem entender.

Wandinha apenas fechou sua janela assustada pelo acontecimento e deixou o garoto sozinho sem entender o que havia acabado de acontecer. Tentou finalizar sua tela mas sem sucesso, estava pensando na experiência de ter tido um "contato" com outro alguém além de sua família e seu tio, isso simplesmente não saía de sua cabeça. Cansada, resolveu-se deitar e torcia pra que no dia seguinte tivesse inspiração o suficiente.

Eu espero que tenham gostado do primeiro capítulo, e que também curtam uma fanfic da Wandinha com ela tão vulnerável já que a maioria das histórias ela é sempre muito esperta e durona; acho que nunca tinha li uma que explorasse isso nela então achei interessante escrever algo pra esse lado.
C.

Wandinha e Xavier -  AutismoWhere stories live. Discover now