Capítulo 03

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O dia a dia como de dona do morro é uma loucura, B.O em cima de problema e o pau torando. É lojista querendo prazo, famílias precisando de assistência, irmãos se desentendendo... da noite para o dia tudo se transformou na maior correria.

Val me passa todos os relatórios que pedi, e a atualização das mercadorias que estão sendo vendidas, confiro as barreiras, os disciplinas, o serviço social, tudo conforme ela foi orientada a fazer, estou feliz em acertar na colocação dela no quadro.

Separo tudo de uma forma que eu entenda, pois tenho que passar toda transparência para o quadro final, acho isso uma canseira, mas enquanto estiver em observação tudo precisa ser avaliado por eles.

Pego o telefone para mandar tudo no grupo, porém vejo mensagens de um número desconhecido, abro e leio, fico estática por alguns segundos até recobrar os sentidos e conseguir reagir. "Puta que pariu", mal cheguei e já estou sendo ameaçada, "é para acabar com os pequi do Goiás mesmo".

(Número desconhecido) 17:39

Slv MN.

Seguinte, aquele dia eu só dei um toque pra você, mas agora o papo é reto, se continuar me procurando vai ter volta. "O barato é Loko", você tá chegando agora eu já tenho 25 anos aqui dentro, se brincar quando você nasceu eu já estava no crime, fica ciente que eu não baixo para você e nem para ninguém. E pode procurar, e te garanto que aí dentro desse morro não vai encontrar ninguém pra por na missão... aí não tem nenhum pra bater de frente comigo. Se vier, vai voltar.

Opto por não responder, mando mensagem na disciplina responsável e marco uma "R" para daqui uma hora. Ligo para o Papa e assim que ele atende passo a visão de tudo já com os print da conversa. A chamada é encerrada, logo após finalizar os assuntos da pauta, coloco o telefone sobre a mesa e me permito pensar sobre tudo que está acontecendo em tão curto espaço de tempo.

Por um minuto sou acometida por um arrependimento, me pergunto o porquê de não ter mantido meu posicionamento sobre não me envolver no crime, afasto esse sentimento afinal lamentar não é uma opção, agora é focar na missão e ir para cima de uma solução.

Preciso capturar esse vacilão o mais rápido possível, primeiro pela minha integridade e depois para mostrar que eu sou capaz de gerir um morro. Vou mostrar a todos que estão duvidando que eu sou capaz de manter a ordem dentro do meu espaço, onde já se viu deixar qualquer um atravessar meu corre, não mesmo.

As vezes queria ter o dom de me dividir em duas, assim conseguiria dar conta das duas vidas que tenho levado, como não posso pego as minhas chaves desço o morro para buscar meus filhos na escola, no caminho paramos em uma sorveteria, o mínimo de lazer que consigo com eles, já é um alento para mim.

Deixo as crianças em casa com minha mãe, mas antes de sair tomo um cafezinho que é de lei, a essa altura, mesmo que eu não tenha dito todos em casa já sabem os caminhos que estou seguindo, o bicho literalmente vai pegar daqui a pouco.

Pego minha afilhada na entrada do morro, seguimos para mais um perrengue. Em minha mente um turbilhão de pensamentos correm soltos, dirijo até uma zona de mata não muito longe, temos que conversar com uma usuária que anda causando problemas no morro. Descemos do carro e Jk vem nos receber, vejo os irmãos do quadro todos armados, um gelo corre em meu corpo, embora sejam ócios do ofício eu não me sinto confortável em situações como esta.

Caminho até onde estão concentrados enquanto observo tudo rapidamente, ainda não me habituei a esse cenário.

— Então mano, qual a situação aqui?—Perguntei vendo um casal amarrado pé e mão, deitados no chão.

— Parada é a seguinte, esse povo tem mais de três avisos sobre roubar na comunidade, mas eles não estão acatando a visão só com advertência verbal, na gestão passada a regra era "moer no cacete", mas agora quem decide é a senhora.

Olho para o casal e meu coração se parte ao ver a que ponto o ser humano chega em decorrência do vício, é triste essa realidade. Por mais que pareça hipocrisia da minha, uma vez que vivo do tráfico, eu sinto a dor das famílias que sofrem com esse mal.

Deixo de lado meu "eu afetivo" e foco no problema diante de mim, essa será minha rotina de agora em diante e não posso simplesmente passar a mão na cabeça de todo mundo por compaixão, a orientação foi dada, as normas estão aí pra todo mundo.

— Parada é a seguinte, escreveu não leu o pau comeu! Vacilão segura a onda e arca com as consequências... no caso deles vou dar um desconto, estão sob o comando do vício, desce 20 mangueiradas em cada um e oferece a oportunidade de se internarem, todas as despesas da clínica será nossa conta.

— E se eles não quiserem? A maioria não quer se tratar? —JK pergunta, já pegando as mangueiras.

— A oportunidade tá aí abraça quem quer e se não quiser é pau no gato, caso errem novamente. — dou de ombros.

— A senhora quem decide!

— Aliás esse é o procedimento padrão em futuros casos semelhantes, manda no grupo só para passar a ciência mesmo, inclusive, se alguém quiser tratamento em qualquer tempo é só encaminhar para a Val que ela providencia— decido tomar uma atitude em relação a quem deseja se livrar desse mal.

— Pode deixar! — JK assenti.

Me despeço dos irmãos e antes que eu Heloísa entre no carro, ouço os gritos, sinceramente não tenho cabeça para essas situações, se eu tiver de fazer eu faço, no entanto, o quanto eu puder me esquivar certamente eu vou.

Volto para a cidade completamente sem espírito para mais nada, deixo Heloísa em nosso QG e vou para casa. Minha face estampa a minha exaustão, assim que entro sou recebida por meus filhos que me abraçam e me beijam, só assim para que as dores do mundo sumam dando espaço a sorrisos de paz.

Deito no sofá, ligo a TV, em seguida o meu telefone toca, olho a notificação e é Thiago, nossa relação já foi boa, contudo hoje em dia está muito desgastada, ainda que o casamento tenha se findado eu não vou abandoná-lo naquele inferno, ele nunca me deu motivos para soltar sua mão.

Como casal já entendemos que não há mais futuro, como amigos se mantivermos o respeito será para sempre. Há um ano e meio que o Thiago está preso, sempre que eu ia visitá-lo surgia um problema diferente, como foi difícil. Logo no primeiro trimestre ele foi transferido duas vezes para presídios diferentes e um mais longe que o outro, um sufoco só.

Nesse último bonde, nosso maior problema foi a documentação, tínhamos que ser oficialmente casados, aí foi uma correria infinita. Quando enfim consegui fazer a carteirinha de visitante eu "rodei", tudo graças uma cagueta que vivia colada em mim.

Passei cinco meses presa, e graças a um HC estou respondendo em liberdade, pouco antes de eu sair já havíamos decidido ficar só na amizade, sei o quanto é difícil e doloroso puxar tanto tempo e o quanto os sentimentos ficam aflorados, os dias de visita são sufocantes, estar só e ver os demais com seus familiares sem receber nenhum abraço.

A vida foi cruel com a gente, apesar da química e da afinidade, nós fomos afastados antes de firmarmos os vínculos, ficou a amizade é o que importa. Mesmo separados, Thiago sempre me liga e pergunta sobre a vida e os dias, eu gosto de falar com ele, sempre temos um diálogo pacífico principalmente depois da separação.

—Alô, oi..., como você está?— Pergunto, atendendo a chamada.

—Ois, estou bem apesar do lugar, estaria melhor se estivesse aí com você, mas se Deus quiser essas portas vão se abrir e breve estarei na rua — Ele fala com um fio de alegria na voz.

— Amém, amém! Está com a voz melhor hoje, vai me contar?

— Falei com o advogado e ele disse que nos próximos meses sairei, aí é só felicidades minha amiga. Vamos viver nossa vida longe de tudo isso, longe desse crime sujo.

— Que notícia boa! Mal vejo a hora de te ver livre dessas grades — Falo com o coração na mão, não tenho coragem de falar que estou mais dentro do corre do que nunca.

Conversamos um bom tempo, finalizamos com uma oração e nos despedimos. Minha consciência está pesada, mas eu vou continuar escondendo essa realidade, estou sem cabeça para conselhos que não vou seguir.

O melhor que eu faço é abstrair, fingir demência e deixar a vida acontecer, não vou me estressar por antecedência, o que eu poderia fazer eu não fiz, que era bater o pé e dizer não, por mais que eu diga que não eu sei muito bem que aceitei por ego e sede de poder.

A DonaOnde histórias criam vida. Descubra agora