11 - Resiliência

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Resiliência é a capacidade de um organismo de, como a água, se adaptar as mais diversas condições. Como cresci basicamente no mesmo habitat, nunca tive a necessidade de praticar tal habilidade, tão essencial a evolução de qualquer ser. Porém, acredito que os anos longe de casa me fizeram ver essa força que eu tinha dentro de mim. No dia seguinte bem cedo, me arrumei para sair.
Pedro tinha acabado de acordar e pedi permissão para dividir a pia para escovar os dentes.
- Está galante. Conseguiu o emprego? - comentou, escovando os dentes. Seus cabelos, bagunçados como estavam, lhe conferiram um charme a mais.
- Na verdade, ainda não. O teste de verdade será hoje
Ele enxaguou a boca e secou, então me deu um tapa na bunda e um beijo no rosto
- Boa sorte. Não que precise.
- Valeu
Cheguei a concessionária na hora marcada e fui para o vestiário e me troquei. Em meia hora, me apresentei ao escritório de Augusto já pronto, recebendo um belo sorriso de aprovação de Vera. Augusto chegou logo depois
- Vera, mas já? Daqui a pouco vai dormir aqui. E está diferente. O que houve? Soltou os cabelos, parece mais alegre - e riu.
- Nada demais, senhor Augusto - respondeu, corando levemente
- Bem, seja o que for, está ótima. E olha pra você - se voltou pra mim - Parece um cavalheiro. Gostei. Então, vem aqui no escritório que quero te passar os detalhes.
Entramos e eu mandei um beijinho para Vera, na surdina, que o recebeu rindo como uma colegial.
- Garoto, na verdade não tenho muito o que dizer. O cliente de hoje, o Sr. Maia, é um homem estritamente pontual. Marcou conosco as 10h , então as 9h50 já esteja pronto para receber. É um homem de poucas palavras, não entende muito de carros, mas entende de blefe. Sabe quando o tentam enganar então, se não for um exímio jogador de poker, seja sincero com ele.
Eu apenas confirmava com cada palavra, absorvendo tudo o que podia
É um homem de rotinas sólidas, e uma de suas tradições mais sagradas é trocar de carro uma vez por ano, na mesma época. Caímos em suas graças o bastante para ele vir a nossa loja nos últimos três anos, mas sei que podemos ter mais dele. É um homem influente e conhece muitas pessoas. Poderia nos indicar amigos.
- Agradeço a oportunidade - respondi - Só uma coisa. Me parece ser uma tarefa muito importante. E eu sou iniciante. Não me leve a mal, não estou fugindo do desafio, apenas quero garantir quero senhor está plenamente ciente de sua escolha.
Parece que eu tinha chegado ao "x" da questão. Uma coisa que até mesmo Augusto devia estar pensando desde que me propôs a tarefa.
- Pois é, garoto. A verdade é que estou apostando muito. Você joga xadrez?. - e se mostrou desconfiado quando respondi afirmativo - Então, conhece a jogada do gambito.
- Sim. Basicamente, usar uma peça como sacrifício para tentar conseguir algo com isso. Um truque, para atrair a vítima. Não me leve a mal, eu reconheço que como novato sou como um peão, que pode ser sacrificado sem grandes danos. Mas não tem medo de perder um cliente, que pode ser uma peça muito mais valioso.
Ele ergueu as sobrancelhas em surpresa.
- Outras pessoas se sentiriam ofendidas se serem referidas como peão - brincou.
- Na natureza é assim. As formigas, por exemplo, se unem para criar uma barreira e proteger a toca do frio, chuva e outras coisas. Se sacrificam em nome no grupo e da rainha. Eu, como líder, também pensaria assim.
Ele me olhou em silêncio, parecendo cada vez mais difícil esconder o espanto.
- Pois bem... - e riu, ainda sem acreditar - o fato é que perder o senhor Maia não seria uma perda tão grande assim. Ele compra um carro por ano, como falei. Tenho clientes que compram um carro quando estão estressados. E a maioria são banqueiros então - riu - você deve imaginar quanto eu vendo a eles - Não. Maia só é valioso enquanto potencial. Que se não realizado, não vale. Vários vendedores bons não caíram em suas graças. Então estou apostando em você. Se caiu em minhas graças, creio que vai dobrar o cara. - e pigarreou, claramente arrependido de ter admitido aquilo tão cedo - Pois bem. É isso.
- Entendo - fingi não ter notado seu constrangimento - Mais algum conselho?
- Sim. Não me decepcione - esse ele falou bem sério.
Eu então obedeci. Quando cheguei no pátio, na parte coberta, fiquei olhando o ambiente, reconhecendo cada lugar, as pessoas que o frequentavam. Conhecer o terreno é fundamental para qualquer caçador e não importa em qual selva esteja, essa regra é fundamental em todos os locais.
Na hora inglesa, vejo Augusto acenar para mim de longe. O tal Maia era um homem de meia idade, porte de nadador. Daqueles que parecem sempre encontrar tempo para se exercitar. O terno lhe valorizava. O cinza do tecido combinava bem com o grisalho dos cabelos de do cavanhaque. Tinha olhos azuis, pele queimada de sol.
Fiz um gesto afirmativo para meu futuro patrão. Observei que Maia falava ao telefone e olhava alguns carros de forma desinteressada. Esperei onde estava, estudando. Era um daqueles homens objetivos, olhava bem sucintamente e rapidamente parecia fazer uma avaliação do modelo, partindo logo para outro.
Meu patrão gesticulava para eu ir e eu fiz sinal que iria esperar mais. Seu gesto deu a entender que ele iria arrancar os próprios cabelos. Achei graça, mas mantive o tom profissional. Maia já tinha saído do telefone e continuou olhando. Até que parou no último lançamento. Um modelo veloz e na cor cinza. Tive o palpite de que ele gostava dessa cor. Olhou bem o veículo e então olhou para o relógio.
Foi minha deixa.
- Vejo que gostou do A7 Sportback. Não poderia ter eleito melhor. E a cor cinza combina com o senhor. - cheguei direto ao ponto, então completei, fingindo ter me precipitado - ah desculpe. Me chamo Fábio. Irei lhe atender hoje.
Ele me olhou de cima a baixo, gesto aparentemente comum naquele meio, onde as pessoas te julgam logo o primeiro segundo e você tem que causar uma boa primeira impressão.
- Estou te esperando um tempão.
- Desculpe, o vi entretido há alguns minutos e não quis atrapalhar. Estava bem ali - indiquei, sem demonstrar nenhum receio - Vi que descartou os utilitários familiares e foi direto nos esportivos. Parece um homem que gosta de ação. Imagino que queira experimentar uma corrida nessa belezinha - e mostrei as chaves que já tinha pego de antemão.
Maia continuou a me olhar como se eu fosse uma criatura estranha e única. Imaginei que minha atitude de cara o desarmaria. Tal como Augusto, ele era do tipo de homem que não está acostumado as pessoas de cabeça erguida ao falarem com ele. Estava acostumado a intimidar e não a ser intimidado. Na verdade, esse era um ponto que ainda me intrigava. Digo isso, pois percebi um certo receio nele que não identifiquei de cara o que seria
- Aceito. Você dirige. - e foi indo ao pátio onde estavam os modelos para teste de direção.
Chegamos e eu tentei insistir.
- Tem certeza que não quer dirigir?
- Eu não dirijo.
- Sinto muito. Não queria lhe constranger - e sentei no banco e ele no banco de trás.
- Para sua informação. Eu sei dirigir, mas não o faço. - corrigiu, claramente com o orgulho chamuscado.
- E eu jamais insinuei o contrário. - e lhe pisquei pelo retrovisor, usando minha melhor cara de poker.
Mais uma vez senti Maia encolher e algo dentro de mim acelerava o sangue em minhas veias. Já tinha entendido porque Augusto me escolheu para aquela tarefa. Pois a estratégia usada contra ele era a mesma que usei contra meu futuro patrão. Minha defesa anti predatória que era capaz de inverter o jogo e deixar meu predador encurralado.
Mas tinha algo mais. Algo que provavelmente nem Augusto previa mas eu sim. Meu faro não me enganava. Eu só tinha que encontrar uma brecha para cravar minhas presas. Como uma onça, quando eu desse o bote, seria diretamente na jugular.
Aproveitei o silêncio do senhor Maia durante o trajeto e lhe expliquei sobre o veículo, seus potenciais. Fui bastante honesto com os defeitos, pois seguia o conselho de Augusto que me alertou sobre a inutilidade de tentar mentir para aquele homem.
Foi quando seu telefone tocou. Ele o pegou, olhou a tela e bufou antes de atender, fazendo sinal para eu interromper a explicação.
Me calei e ouvi, fingindo ter atenção somente na estrada
- Oi Amor. Sim... Aham... Entendo... Eu já disse que sim... Não. Não há a necessidade de... Tudo bem... Tudo bem... Te ligo depois, sim? Estou ocupado agora. Sim, negócios... Outro.
E desligou. Tentei esconder o sorriso que brotava em minha boca, procurando parecer o mais casual possível.
- Mulheres - fiz pouco caso, usando de uma tática comum a qualquer homem casado. Falar mal das patroas.
Pela primeira vez, vi, nem que fosse um milímetro de sorriso. E me espantei em perceber como ele ficava mais bonito quando tentava sorrir.
Era hora de partir para a jugular.
- Como é minha função aqui orientar sua escolha, senhor Maia, devo dizer desde agora que esse carro não é para o senhor. Deveria escolher outro
Ele me olhou intrigado.

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