16 - Migração

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Muitos animais possuem por hábito migrar de tempos em tempos em busca de recursos e melhores condições de clima. Mais do que necessidade, aquilo é um instinto, com o qual a espécie já nasce programada. Você pode garantir a um pássaro todas as condições de alimentação, mesmo no inverno, mas isso não muda o fato que, se ele tiver a escolha, irá seguir seus coração e migrar para o outro hemisfério na primeira semana do fim do verão.
Eu sempre fui um animal estático, mais parecido com um urso que preferia hibernar no inverno. Minha única mudança na vida foi quando abandonei a casa de meus pais e ainda lembrava da sensação de liberdade. De estar em um lugar novo, desconhecido. A adrenalina daqueles primeiros meses ainda me eram uma memória agradável e bastou minha viagem para Natal chegar que eu senti a mesma emoção e pude ter a certeza que novos horizontes era algo que me encantava.
De véspera, tive uma série de nervosismos. Primeiro com minha apresentação. Virei noites redigindo o que falaria, escrevendo e reescrevendo inúmeras vezes. E em segundo, pois a própria ideia da viagem me causava vertigem. Isso porque eu nunca tinha embarcado em um avião na vida e a ansiedade era grande. Tanto que nem dormi a noite que precedeu minha partida.
Porém, chegando ao aeroporto destino, de mala na mão e encarando aquele mundo novo e desconhecido, meu coração acelerou e eu experimentei o doce efeito da adrenalina. Capaz de tornar todos os anseios pequenos e insignificantes.
Cheguei ao hotel que estava reservado pra mim e a primeira coisa que fiz, após terminar os trâmites de chegada e deixar as malas, foi sair e andar pelas ruas, observando cada lugar e pessoa, como se tudo fosse interessante e único.
Era hora do almoço e parei em um restaurante aleatório e pedi a primeira coisa que me veio a cabeça. Enquanto esperava, admirei tudo em volta até que observei, sentado umas duas mesas a direita, um rapaz que devia ter a minha idade, mas onde as responsabilidades da vida lhe atribuíram ar mais velho.
Vestia um terno e bebia uma água enquanto esperava o prato. A frente, digitava freneticamente o notebook enquanto consultava o celular. Diferente de mim, parecendo completamente alheio ao mundo externo e suas belezas. Talvez por já ser residente e nada daquilo lhe era novidade, tal como ocorria comigo, ou simplesmente porque as atribuições do dia a dia lhe tomavam tanto o tempo que qualquer segundo roubado para algo tão simples como olhar a paisagem era uma completa perda de oportunidades.
Em minhas caçadas com meu pai, uma das primeiras lições que tive foi a arte de contemplar o mundo a volta.
- Um caçador deve ter foco quando detectar uma presa. Sua atenção tem que ser toda dela. Mas isso não o impede de, durante todo o momento restante, contemplar a região a sua volta. Você tem que observar tudo, para conhecer os caminhos, as características, os riscos e potenciais. Para quando achar sua presa e ter de abandonar toda a atenção em volta, poder ir atrás dela sem se preocupar com o terreno, pois já vai estar tão familiarizado com ele que será como se estivesse andando em casa.
Essas eram suas palavras.
- E também - concluiu - deve observar tudo pois, o que seria uma experiência na natureza se você não pudesse pelo menos parar alguns segundos para olhar suas belezas.
E de fato tudo ali era belo. Como um animal recém migrado, eu observava tudo. O restaurante com vista para o mar, o tempo agradável de céu azul, as instalações impecáveis do lugar e, para compor aquela exposição, a figura desse garoto que era algo bonito de se admirar.
Tinha o rosto quadrado, cabelos bem penteados castanhos, pele morena, entretanto pálida, de quem não pega muito sol. Usava óculos de aro fino, terno impecável bem ajustado ao corpo. Alguém cujo charme estava justamente no ar respeitável que emanava.
Me permiti admirar aquele espécime enquanto aguardava a comida. E foi nesse momento, por um instante apenas em que ele desviou os olhos do notebook, que me vislumbrou. Seus olhos pararam em mim, percebendo que o olhava.
Meu ato normal seria parar de o encarar, mas naquele dia não segui o protocolo habitual. Estava em terras estranhas, sentindo-me bastante seguro. Não conhecia aquele homem e talvez nunca mais o visse na vida. Se não gostasse de ser encarado, não seria um problema que perduraria muito tempo, uma vez que, terminando minha refeição, poderia sair e nunca mais lhe cruzar o caminho.
Então, permiti-me brincar um pouco.
Ele voltou a atenção para seu trabalho, mas a partir do momento em que percebeu ser observado, seus olhos, vez ou outra, traiam-no por conta da curiosidade e ele olhava novamente para minha direção. Sorri para ele e o deixei sem graça.
O jogo ia ficando mais interessante e eu me diverti. Minha comida chegou e, apesar de eu não fazer ideia do que era, parecia apetitosa. Dei uma pausa em minhas investidas e me dediquei ao prato. Foi então que, arriscando um olhar de canto de olho, notei que agora era ele quem me observava.
Sorri em cumplicidade e ele logo desviou, sem graça de ter sido apanhado.
Terminei minha refeição com a calma que aquela iguaria pedia, saboreando e identificando seus ingredientes e temperos. Ao fim, pedi uma limonada e apreciei enquanto fazia a digestão.
Meu companheiro de longa distância acabou de comer na metade do tempo e aproveitou o período economizado para dar mais atenção ao computador. Ao fim, fechou o notebook e pareceu pensar em sua próxima ação. Olhava para minha mesa avaliando, então, olhando o relógio, desistiu de qualquer plano e pediu a conta. Fiz o mesmo. Ao pagar, noto que na pressa, deixou o celular na mesa.
Passo por ela e aviso ao garçom e como o dono estava ainda na porta do restaurante, pego eu mesmo e o alcanço.
Ao sair, noto que o mesmo tateava os bolsos e, quando se vira para ir buscar o aparelho esquecido, me encontra estendendo em sua direção.
- Cuidado com a pressa - brinquei, sorrindo ao notar que ficara encabulado.
- Obrigado - e pegou o aparelho, me olhando timidamente nos olhos. - está uma correria louca.
- Percebi. Uma beleza dessas e você nem é capaz de admirar nada. Já deve morar na cidade, acredito.
- Não - corrigiu - Sou de Mossoró, estou em Natal a trabalho. E você?
- A trabalho também, mas de mais longe - admiti. - Estou hospedado no Ocean.
- Eu também - comentou com certa animação, que tratou logo de disfarçar. - Quer dividir um carro?
- Pensei em ir andando - ponderei. - a caminhada não dá nem 10 minutos.
- Eu não sei chegar a pé - admitiu, ainda encabulado.
- Eu te levo - e comecei a andar.
Uma vinda já bastou para saber o caminho de cor. Sempre fui bom em orientação, qualidade sine qua non a um bom caçador. Meu colega me acompanhou, claramente perdido no caminho.
- Cidade muito bonita - comentei. - vem muito aqui?
- Pelo menos três vezes por ano. Já vi de tudo, mas confesso que ainda não decorei o caminho.
- Você anda muito acelerado - comentei - Eu, quando estou em um lugar novo, gosto de apreciar tudo com calma.
Aproveitei o comentário e lhe dei uma boa avaliação de cima a baixo. Notando seu porte atlético realçado pelo terno. Dei uma olhada em seus lábios carnudos, no cavanhaque bem aparado.
- Desculpe, não sei seu nome - lembrei-me.
- Ah... Samuel - respondeu, despertando após ficar estático com minha olhada.
- Prazer. Fábio. Já chegamos - anunciei.
Samuel não escondeu o assombro de descobrir o quão fácil era chegar ali. Apesar do sol forte, o clima do mar deixava tudo bem fresco e nem suamos com o leve exercício.
Entramos e fomos ao elevador.
- Acredito que tenha muito trabalho ainda - deduzi - Não teria tempo para uma folga.
Ele gaguejou, mas então negou.
- Na verdade, minha reunião só irá ocorrer as 18h. Estava apenas deixando tudo preparado.
- Acho que já está mais que preparado. - avaliei - de véspera, só conseguirá ficar mais nervoso
Ao comentar, lembrei-me de meu discurso guardado em minha mala. Dúzias de papéis em que eu tentei sintetizar o que poderia ser uma teoria de vendas. Aquilo, que me tomou tanto o pensamento nos dias que antecederam a viagem e agora foi completamente apagado de minha lista de preocupações.

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