A Bruxa

12 2 3
                                    


Baseado na história do meu Avô que foi passada a mim por meu Tio.

Não me lembro se disseram que era verão ou outono quando meu Avô subiu as colinas de Ribeirão Pires na Belina Vinho com motor de combustão a álcool. No banco do passageiro minha avó observava a paisagem com vivido interesse na densa mata ciliar da Reserva Atlântica.
Meu tio, com idade por volta dos cinco ou seis anos, não me lembro ao certo, brincava no banco de trás com um daqueles bonecos dos Power Rangers que trocavam a cabeça alternando entre o capacete e um rosto em miniatura mal pintado.
A estrada serpenteava pela colina coberta por um telhado de folhas e galhos que invadiam a estrada. A umidade da mata penetrava os ossos e enregelava seus corpos animados. Depois da última curva seguia ladeira acima por um aclive íngreme que forçou o motor ainda mais, obrigando meu Avô a reduzir a marcha para compensar a perda de impulso.
O asilo estava no topo da colina, alguns poucos vizinhos mais afastados como se engolidos pela mata. Um muro de bloco cimentício bloqueava a maior parte da vista censurando a paisagem verde de horizonte a horizonte. A única vista possível de dentro ou fora era o portão de correr com as grades pintadas naquele verde francês que já desbotava num tom pálido e esbranquiçado.
A construção era uma enorme caixa em alvenaria com uma estrada cimentada em sua lateral até o fundo. Do outro lado um muro alto do mesmo bloco que a frente separado do corpo da construção por um estreito corredor interrompido por uma mureta entre uma lavanderia e o restante do terreno. Nos fundos haviam dois quartos sem comunicação com o restante da caixa e um pedaço de terra batida onde construíram anos antes um casebre em madeira e tapumes. A única modernidade da construção era um banheiro em alvenaria e a pia da cozinha com cuba de fibra de vidro e resina.
Estranhamente, para uma construção daquele tamanho só haviam três portas na caixa principal. Uma na frente, uma na lateral cimentada e outra na lavanderia.
Um representante dos empregadores que o contrataram para ser o zelador do asilo desativado os esperava do lado de dentro e pareceu muito animado com a chegada da família. Mostrou a caixa e os mais de vinte e seis quartos servidos pelo grande corredor que desembocava na pequena sala e cozinha industrial. Destacou o grande terreno com suas grandes mangueiras e ameixeiras, as possibilidades de se fazer uma horta grande e a caixa d'água em cimento no meio do quintal com capacidade para vinte mil litros.
O conjunto todo era um grande propriedade. Tudo estaria a sua disposição para cuidar e melhorar dentro de um orçamento anual modesto.
Para o fim do tour ele apresentou a única moradora do asilo, uma senhorinha na casa dos 82 anos que se recusava a deixar o local. Era baixinha e magra, vestida em trajes multicoloridos sob um xale caseiro. Seus tremores intensos demonstravam um forte sinal de Parkinson em estado avançado. Apesar da fraqueza dos membros possuía um olhar firme e afiado, a língua ferina não perdia uma oportunidade em destilar seu veneno e atacava tudo o que sua mente senil considerasse uma fraqueza ou um demérito.
Não gostou do meu Avô logo de cara, um homem maduro, já começando a sair da segunda idade. Negro e alto em seus um metro e noventa, atraiu um ódio particular da senhora idosa. Não sei dizer se o considerava um invasor de seu território ou se apenas odiava sua cor da pele, o caso é que criou antipatia por ele de imediato e a cada dia inventava novas formas de atacá-lo com palavras ríspidas e desrespeitosas.
Os dias passavam tranquilos na propriedade, tirando a convivência com a senhorinha que ia de mal a pior.
Começou com ruídos estranhos a noite. Som de cadeiras arrastadas e objetos caindo no chão. Meu Avô se levantava e ia conferir se a senhorinha não caiu por acidente e sempre recebia um chingamento em recompensa. Em pouco tempo os barulhos aumentaram e ele precisou pedir que ela parasse. Na porta dela ele escutou outra voz, alguém conversava com ela a meia voz. Ele voltou para o quarto que dividia com minha avó e meu Tio e esperou.
Pela manhã ele a abordou no café e pediu que não recebesse visitas fora do horário diurno e de preferência que o avisasse sobre quem e quando viriam. Ela caiu na risada, uma risada perversa e sem humor olhando nos olhos dele com ódio e um prazer maligno. Cuspiu em sua face e se retirou para seu quarto deixando ele proferir todos os palavrões do dicionário informal às suas costas.
Naquela noite tudo estava em silêncio e ele acreditou que a senhora os deixaria em paz. Na madrugada um barulho alto o despertou. Alarmado ele pulou da cama e se abriu a porta do quarto enfiando o corpo no corredor sob a escuridão sepulcral. Do quarto da senhorinha uma luz vermelha brilhava fracamente e ele sentiu os pêlos do seu corpo se arrepiarem até doer. A velha falava em voz alta emitindo as palavras num turbilhão sem parar para respirar. Era estranho por si só e assustador, mas o que marcou meu Avô foi a voz que respondia a velha. Uma voz profunda como se viesse de um buraco profundo trovejava em resposta as preces da velha. Prometia realizar seus desejos de perfídia e derramar sangue em seu nome. Atraía a velha para mais perto e a voz dela aumentava ainda mais hedionda e terrível. Meu avô voltou correndo para o quarto e fechou a porta. Seu coração não batia mais e o homem negro e enorme ficou branco como papel. A voz aumentava e a luz vermelha invadiu o quarto iluminando tudo em carmim. Três batidas na porta fizeram o coração do meu Avô voltar a bater e ele pulou sobre a cama protegendo a esposa e o filho com seu corpo. A voz imitava a sua chamando pela esposa e filho como se estivesse lá fora e o ele de dentro fosse um impostor. As batidas se repetiram noite afora em seu padrão de três. A cada nova batida seus corações falhavam ameaçando desertar.
Pela manhã as batidas cessaram repentinamente. Um silêncio sepulcral caiu sobre o asilo. Não havia nada que parecesse vivo naquele lugar. Lentamente meu Avô saiu do quarto. O corredor estava vazio, a porta do quarto da velha fechado. Não se ouvia nem uma respiração sequer.
No orelhão meu Avô discou o número do representante da empresa e o acordou de um sono tranquilo. Relatou o ocorrido deixando de lado a parte sobrenatural e pediu que retirassem a velha imediatamente da propriedade ou ele se demitiria.
Naquela tarde o serviço social recolheu a velha à força, os pertences em caixas de papelão amontoados na Perua. Entre pragas e cuspes a velha foi levada e a familia pôde respirar com alívio.

Anos depois minha mãe, eu e minhas irmãs nos mudamos para o asilo. Moramos num dos quartos dos fundos. Uma tarde a cerração tomou conta da colina como sempre acontece com a umidade vinda de Santos. Com idades próximas as crianças brincavam na terra batida se camuflando na névoa para se esconder no pic-esconde. Como mais velho e mais ousado eu buscava o melhor esconderijo, um local que os menores não ousariam me procurar. Entrei no casebre de madeira forçando a porta patética fechada com corrente e cadeado. Espremi meu corpo magricelo entre as tábuas e me vi dentro de um cômodo escuro e imundo. Xícaras de porcelana cheias de uma material escuro ao lado de velas sobre a mesa com os pavios queimados, nos cantos alguns relógios velhos que há muito não funcionavam. As panelas e pratos sobre a pia como se a espera do morador. Haviam latas e potes num armário modesto com prateleiras mofadas. A cama ainda feita com as cobertas e lençóis dobrados na cabeceira. O limo irradiava pelas paredes tomando conta do lugar aos poucos.
Num canto perto do banheiro, atras de algumas tapeçarias e cortinas penduradas eu vi olhos escuros se misturando a penumbra. Ela olhava pra mim com seus olhos de obsidiana brilhando na escuridão. Sua voz era profunda e ressoava como se viesse de dentro de mim. Ainda me lembro daquela voz. Acredito que eu não possa esquecer. Ela disse que ninguém poderia tirar ela de lá.

Os Contos dos Viajantes - A BRUXA Onde histórias criam vida. Descubra agora