O Conto do Vampiro

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O tempo estava calmo e as nuvens caminhavam pelos céus preguiçosamente sobre a Necrópole. Abaixo seus habitantes se entregavam a suas vontades festejando, fornicando, roubando e assassinando. Outros, a minoria, apenas ignoravam a balbúrdia tentando cuidar de suas vidas.

Enquanto alguns dormiam... outros caçavam.

Perto do cais na parte baixa da cidade, entre torres de tijolos vermelhos e prédios de janelas quebradas encontra-se o edifício St. John D'Angelus, banhado pela iluminação parca dos postes de luz abastecidos pelo sistema subterrâneo de gás. Fora construído cento e cinquenta anos antes, com o propósito de receber e tratar os pacientes vindos da Grande Peste durante o curto reinado do Rei Akron Terceiro, o reinado mais curto da história durando apenas quatro anos, todos dominados pela praga. Era projetado para receber grandes maquinários uma vez que seu propósito inicial fosse cumprido.

Quando o rei morreu, o grande prédio foi fechado e ninguém se atreveu a adentrar seu enorme pórtico com mais de nove metros acima do chão por medo da praga estar a sua espera dentro de suas paredes.

Ás vezes algum transeunte desatento se aproximava do edificio, e em sua caminhada descuidada escutavam um zumbido baixo. Ao se darem conta de onde estavam corriam em disparada em busca de um abrigo em algum dos milhares de pubs espalhados pela área do porto em busca de uma bebida que fosse capaz de lhes restituir a coragem e a cor da pele que a essa altura estava branca como de fantasmas. Essas pessoas sempre eram desacreditadas e até mesmo motivo de chacota dentro dos estabelecimentos abafados e pestilentos como os pântanos da subferia da cidade.

O fato é que ninguém ousava se aproximar do edificio St. John D'Angelus, fosse por medo da peste ainda estar lá cento e cinquenta anos depois ou pelos barulhos assustadores. O medo era tamanho que as construções vizinhas também foram abandonadas e com o tempo padeceram da mesma superstição como se fosse uma peste altamente resistente e contagiosa.

Naquela noite algo inusitado aconteceu quando o viajante Edgar Marcel entrou no beco escuro e imundo vindo da rua quinze. Ele andou até a parede no fundo do beco e se pôs a escalar pelos buracos que o tempo e os vândalos fizeram no muro dos fundos de uma fábrica construída usando uma parede da antiga construção.

De cima do telhado ele observou as luzes amareladas da cidade, as chamas queimando mais de mil metros cúbicos de gás a cada hora.

Depois de se recompor ele caminhou com cuidado, seguindo os pinos que indicavam as treliças de sustentação do telhado. Num canto a oeste, entre a caldeira e a torre desativadas ele encontrou uma claraboia. Tinha cerca de seis metros de comprimento se erguento para o céu por quatro metros em uma base retangular. Luzes saíam pelos vidros sujos e cobertos pela fuligem das fábricas intensamente ativas que moviam e sustentavam a mais de dois séculos a Necrópole.

Ele se apertou contra o vidro da clarabóia tentando observar o piso do edificio. Ali ele pôde ver todo o maquinário e aparato necessário ao funcionamento vinte e quatro horas de uma fábrica textil. Os funcionarios não se moviam de seus lugares enquanto passavam de um para o outro grandes fardos de produtos, alguns mais pesados que quatro vezes seus corpos esquálidos.

Ele percebeu que dos tornozelos deles saíam grossas correntes ligadas ao chão e chumbadas no piso de concreto. Aquele prédio assombrado era o lugar perfeito para instalar uma fábrica clandestina baseada em trabalho escravo.

Todos os anos centenas de pessoas eram despejadas de suas casas por dívidas, jogos de azar e toda sorte de desventuras. Sem nenhum auxilio elas estavam a própria sorte nas ruas e desapareciam sem que ninguém notasse.
Em um momento de descuido ele soltou seu peso sem querer e o vidro antigo e sem cuidado da clarabóia cedeu. Ele despencou vinte metros caindo sobre uma tapeçaria em processo de tecelagem, despedaçando o trabalho complexo da máquina semi automática.

Os Contos dos Viajantes - A BRUXA Onde histórias criam vida. Descubra agora