Recomeçar nunca pareceu tão difícil quanto agora.
Uma versão de mim mesma encarava-me no espelho todos os dias, e eu relutava contra cada lembrança ou pensamento ruim fragmen-
tado em minhas memórias. Mas era inquietante ter tantas memórias ruins e não conseguir me livrar ou esquecer-me de nenhuma delas.
Três semanas de aula foram perdidas porque eu apenas ia para as consultas na psicóloga, frequentava a terapia e seguia as atividades ocupacionais que se encarregavam de dispersar todas as infinitas espirais de sentimentos impulsivos e furiosos em mim, além de tentar controlar todos aqueles meus pensamentos compulsivos e ruins.
Por uma fração de segundos questionei-me se continuaria fazendo aquilo comigo mesma, colocando-me para baixo, jogando-me em um precipício dentro de minha própria consciência. Derrubando-me para o fundo de um poço gélido e sombrio o qual eu já nem costumava mais mencionar com os curtos pensa- mentos que perpetuavam em minha mente, todos relacionados àquela pessoa que eu costumava ser.
Nada daquilo estava certo.
Ninguém poderia ficar preso às sombras para sempre.
Não me sentia bem com a plena ciência de que era eu quem estava escolhendo
aquela circunstância e optando por continuar daquela forma. Por minutos continuei encarando-me no espelho e questionando se era isto o que eu realmente queria, se esta era a opção ou o caminho certo que eu deveria seguir.Antes estava caída e envolvida por um silêncio perpétuo que me cobria feito um manto de proteção. Já não queria ter que continuar naquela mesma situação, havia tempos que silenciara aquela sensação dentro de meu ser, havia calado sua energia que queria pulsar em minha alma. No entanto, em certos momentos tais pensamentos surgiam em minha mente gritando e fazendo-me recordar tudo o que eu tentava esquecer.
E eu relutava, a todo segundo.
Mas era como ter duas criaturas habitando dentro do mesmo hospedeiro. O bem e o mal.
Prontos e prestes a renascer através das cinzas que acompanhavam as som-
bras de meu passado.
Meus pais adotivos retornaram quando souberam que eu estava praticamen-
te entrando em depressão após a morte de Michael. Mesmo depois de algum tempo da chegada deles, não tenho tido nenhum tipo de contato para evitar os conflitos entre nós.
Após meu retorno, não foi fácil manter o controle de meus poderes, mas a cada dia que passava, uma guerra era vencida e outra luta se iniciava. Com tudo o que houve, era inevitável não me sentir sozinha e fraca, principalmente quando meus poderes entravam em seu auge e o caos retornava.
Os médicos e terapeutas disseram que eu estava me recuperando muito bem e que logo poderia retornar às salas de aula. Uma das psicólogas ao decorrer das consultas refletia todos os dias uma frase comigo, até que em algum momento eu a entendesse de verdade. Quando tudo parecia estar prestes a desabar, ao recor- dar-me de todos os meus erros e dores que já me fisgaram no passado ela dizia:
"Desapegar-se não significa esquecer-se do passado, mas sim, não viver em função dele."
E por mais difícil que fosse aceitar e admitir, ela estava certa. Eu precisava seguir em frente, mas o fato de eu estar fazendo isto não significaria que estava deixando meu passado de lado, pelo contrário, eu pararia de viver o tempo todo sofrendo em função dele, em função daquilo e daqueles que já não estavam mais comigo.
Apesar de estar sempre recebendo visitas frequentes de Jon e Godric, fui capaz de notar através deles que havia algo de errado acontecendo lá no mundo fora de meus dormitórios, e não era nada relacionado à expedição citada pelo Oráculo.
Ninguém queria comentar sobre a missão ou sobre como a morte de Michael estava me destruindo dia após dia. Eu sabia que todos os alunos na escola falavam sobre mim e sobre tudo o que fiz nos últimos meses.
Meus amigos estavam escondendo algo e quanto mais eles demorassem a me explicar o que estava havendo, pior seria ao desenrolarem a verdade.
Godric queria que me aproximasse mais de meus pais, na tentativa de desen- volver melhorias e me ajudar a superar os obstáculos. Mas eu ainda não estava pronta para me reencontrar com eles ou lidar com esta situação.Jon e ele estão me ajudando muito, e todos nós sabemos que precisarei tor- nar-me mais forte para conseguir conduzir esta missão.
Nas últimas semanas, após a notícia do Currenier sobre Oyewa, comecei a recuperar memórias sobre minhas vidas passadas. São sonhos mais intensos e mais fortes dos que eu tinha quando era mais nova. Às vezes são somente frag- mentos, fagulhas de um passado esquecido em minha mente.
Os Maytreels dizem que é completamente comum tais visões e vislumbres daquele passado surgirem à tona agora, pois nós retornaremos ao nosso verda- deiro lar, ao nosso lugar de origem, onde nosso povo começou.
Oyewa está morrendo na floresta Sagrada de Rayunaira e isto explica o fato de tantas pessoas em nosso povo estarem adoecendo e partindo cedo sem nenhuma justificativa. Todos somos conectados à árvore da vida e se algo acontecer a ela, todos seremos afetados.
Nos tempos antigos, nossas famílias zelavam, cuidavam e protegiam com suas vidas cada canto Sagrado de nosso planeta de origem. Em meus sonhos recordo-me de como era fantástico e genuíno onde morávamos, antes da Guerra Sombria acontecer.
Retornei hoje para as aulas acompanhada de Jon, para que eles pudessem supervisionar como eu me sairia convivendo com todos meus amigos e colegas outra vez. Já fazia muito tempo que eu não falava com nenhum deles, e eu não sabia qual seria minha reação ao nos reencontrarmos. Eu temia o que eles po- deriam desencadear em minha alma, as sensações, as memórias e toda a culpa que eu carregava sobre meus ombros.
Acordei logo cedo para arrumar-me, vesti uma roupa simples para não chamar a atenção das pessoas e aguardei que Jon viesse me buscar. Eu vivia escondida nos últimos meses, isolada em uma torre para proteger-me e zelar pela segurança de todas as pessoas importantes para mim.
Quando encaro meu reflexo no espelho, mal posso reconhecer a pessoa que acabei me tornando. Um ser vazio, incompleto e totalmente deslocado sobre tudo. Em meus dias nublados e tempestuosos nada mais fazia sentido, era como se eu não estivesse tentando viver, mas sim sobreviver.
— Você vai se sair bem — murmura Jon, apoiando suas mãos em meus ombros. — Não tenho tanta certeza disto.
Seguimos lentamente até o pátio, onde encontraria com meus amigos, mas
ao chegarmos lá, tudo o que vemos eram jovens de mãos dadas, uma grande multidão. Estão todos orando e pedindo proteção aos Antigos. Os últimos meses foram tão avassaladores para todos que não me surpreendo por eles rogarem proteção aos nossos ancestrais.
Do nosso lado direito, uma homenagem está sendo feita a todas as pessoas que haviam partido. As fotos de Michael e Samantha estão penduradas sobre um mural, ao lado da foto de outros alunos.
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O Renascer - O Legado Maytreel Livro 3 (Degustação)
FantasyApós dois anos vivendo no intrigante Instituto de Claverd, Harriet Montgomery encontra algumas respostas que explicam partes de sua trajetória. No entanto, ela e seus amigos agora sabem que possuem a missão de concluírem O Legado Maytreel, escrito e...