Capítulo 3 - Silêncio

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Assim que Tsireya adormece, Raewyn levanta-se e sai do Marui. Não tem sono, já tinha descansado o suficiente quando chegou da viagem. Caminha em silencio à beira mar com os pés dentro de água e sentindo a brisa fresca bater-lhe no rosto.

Raewyn retira rapidamente a sua faca que tem sempre presa à cintura e vira-se para trás quando ouve passos atrás de si.

— Uou cuidado. - Raewyn suspira ao ver que é apenas Neteyam mas mesmo assim não baixa a faca - Sou só eu, porque é que ainda me estás a apontar isso?

— Não confio em ti.

— Porque não?

— Acabei de te conhecer, não confio em ninguém que acabei de conhecer. Por fora podes parecer inofensivo mas não sei como pensas por dentro. - com relutância Raewyn volta a prender a faca à cintura e continua o seu caminho ao longo da beira mar como se nada tivesse acontecido. Para desgosto de Raewyn, Neteyam segue-a.

— Porque é que andas sempre com uma faca? - pergunta Neteyam olhando para Raewyn pelo canto do olho.

— Nunca se sabe quando é que vou precisar dela. Além disso, não é apenas uma faca, é a minha faca de apoio emocional. 

Ficam em silencio durante bastante tempo até mais uma vez Neteyam o quebrar.

— Porque não estás no teu Marui?

— Eu é que te devia perguntar isso. - Raewyn responde e baixa-se para apanhar uma concha que achou bastante bonita.

— Perguntei primeiro. - Neteyam vira o rosto tentando esconder as suas bochechas que aqueceram momentaneamente.

— Não tinha sono. Dormi um pouco depois de chegar. E tu?

— Não consegui adormecer. Não consigo parar de pensar em tudo o que tem acontecido.

Raewyn fica em silencio não sabendo o que responder. Ela tem esse problema, quando a conversa começa a tornar-se mais séria ela teme dizer algo que não deve e acabar por magoar a outra pessoa mesmo sem intenção. Ela nunca consegue arranjar as palavras certas e quando se decide no que dizer muitas vezes acaba por soar rude. 

Ela não quer que Neteyam pense que ela é insensível então começa a planear na sua cabeça a melhor resposta que pode dar.

Vai ficar tudo bem. Não! Não digas isso! Porque pode tudo correr mal!

Tens saudades de casa? Não! Ele ainda começa a chorar de saudades e depois tu não sabes o que fazer!

Devias parar de pensar. Que resposta estúpida!!!

— Bom... - os seus pensamentos são interrompidos por Neteyam que para de andar e coça a nuca - Desculpa ter vindo ter contigo, já percebi que não queres que esteja aqui. Vou voltar e tentar dormir.

Neteyam vira-lhe costas e Raewyn bate na própria testa. Corre até Neteyam e agarra-lhe na mão para que ele não se afaste mas larga-a logo em seguida.

— Desculpa. - Raewyn respira fundo e começa a falar rapidamente com as palavras a enrolarem-se na boca - Olha, eu não tenho muita facilidade em falar com as pessoas e muitas das vezes vou interromper uma conversa com silêncios constrangedores. E isso não quer dizer que eu não queria falar com a pessoa, eu só... tenho um grande bloqueio no que toca a falar dos meus sentimentos ou do que penso. Demonstrar emoções não é comigo. Exceto raiva. Sou bastante boa a demostrar raiva. Por isso desculpa se te fiz sentir que não queria falar contigo. - Raewyn faz uma pausa onde olha para baixo não acreditando que se abriu tanto para um estranho — Isto fez sentido?

Neteyam avalia a expressão no rosto de Raewyn. Nunca pensou que a rapariga que o tinha ameaçado de morte poderia ficar tão vulnerável como estava naquele momento. 

— Sim. - responde finalmente Neteyam. - Não te preocupes, eu também gosto do silêncio. 

Raewyn sorri. Não consegue explicar o que mudou naquele momento dentro de si, mas soube que Neteyam tinha passado de estranho para um conhecido e possivelmente futuro amigo.

Neteyam suspira. Aquela foi a primeira vez que viu Raewyn sorrir verdadeiramente. E foi o sorriso mais lindo que ele viu na sua vida.

Raewyn volta a andar sendo seguida de Neteyam. Não se preocupa agora com o silencio sabendo que o outro também não se incomodava no entanto achou que deveria distrair Neteyam dos pensamentos que o perturbavam.

— Queres que te conte algumas das tradições do nosso clã? - Raewyn pergunta achando ser um bom assunto de conversa.

— Ia adorar.

Ambos se sentam na areia fresca ao lado um do outro e mergulham os pés na água do mar vendo alguns peixinhos brilharem ao passarem por eles.

— Bom, nós, o clã Metkayina, antes de escolhermos o nosso parceiro procuramos por todo o recife a concha perfeita para lhe oferecer quando o escolhermos. Quando encontramos a concha perfeita, a concha que sentimos ser especial, fazemos-lhe um pequeno furo e colocamo-la num fio para que o nosso futuro parceiro a possa usar como colar para simbolizar o nosso amor. Desde que fazemos o colar deixamo-lo bem guardado até chegar a altura de o entregar.

— Já fizeste o teu? - pergunta Neteyam achando aquela prova de amor algo lindo.

— Já. - Raewyn tomba o corpo para trás deixando-se cair na areia, Neteyam faz o mesmo - O ano passado quando fiz dezessete anos os meus pais deixaram-me explorar grande parte do mar de Pandora. Normalmente só podemos sair do recife depois de fazermos dezoito anos mas os meus pais acharam que eu já tinha maturidade para o fazer, mas sentiram-se mais seguros ao saber que a minha irmã de espirito iria comigo. Foi aí que encontrei a concha perfeita. Tenho-a guardada desde aí.

— Disseste irmã de espirito?

— Sim, o clã Metkayina tem uma grande ligação com os Tulkuns, nós consideramo-los nossos irmãos e cada membro tem um Tulkun como irmão de espirito. Eles normalmente andam em grupos e chega uma altura do ano em que nos veem visitar. Mas como eu precisava da minha irmã de espirito, Ny'a, naquele momento ela separou-se do seu grupo para estar comigo.

— Adorava ter um irmão de espirito. - confessa Neteyam. 

— Se um Tulkun te escolher então podes ter. Acho difícil por seres da floresta, mas não impossível. 

Voltam a ficar em silencio a ouvir o som da frisa a movimentar as águas do mar. Passados alguns minutos Raewyn vira a cabeça para olhar para Neteyam surpreendendo-se ao vê-lo adormecido. Raewyn aproveita para observar a paz em que ele se encontrava. O seu peito sobe e desce calmamente e a sua boca está entreaberta deixando entrar e sair o ar. Raewyn avalia as hipóteses que tem.

Acordar Neteyam para que ele próprio volte para o seu Marui.

Ir-se embora e deixa-lo ali a dormir.

Ou levá-lo até ao seu Marui tentando não o acordar.

Eliminou as duas primeiras hipóteses.

Raewyn pega em Neteyam com cuidado surpreendendo-se com a própria força. Aconchega o enorme rapaz contra o peito e faz o caminho de volta para a aldeia com ele ao colo. Ao chegar ao Marui dos Sully, Raewyn vê toda a família adormecida e com cuidado pousa Neteyam perto de Lo'ak, voltando em seguida para o seu Marui.

I see you //NeteyamOnde histórias criam vida. Descubra agora