O suspeito

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"Era uma vez, uma bela jovem de longos cabelos negros e pele branca como papel, seus olhos eram claros como uma manhã ensolarada daqueles que se veem em novelas e filmes, um azul tão limpido quanto a àgua cristalina que corria pelo rio próximo à morena..."
-Não é tão impactante assim... isso não é conto de fadas - a frase foi apagada.
"Se um dia eu pudesse descobrir exatamente o que aconteceu naquele momento, juro que faria qualquer coisa para saber.
Não fazia sentido, ele havia me trocado, fora tão rude da parte dele me abandonar, e eu o amava tão intensamente que meus ossos doiam e meu coração também.
Sentia-me tão diferente, ele sustentou em mim algo que nenhum outro havia conseguido, ele sustentara o amor em meu peito, mas com a mesma força que o segurou tacou-o no chão com força e pissoteou, sambou e arrombou minhas entranhas e aquilo doia, muito mais do que doera antes.
Era uma dor aguda da qual não podia escapar, não tinha para onde fugir e talvez a única solução seja a morte.
Minhas mãos seguiram para a arma em minha frente e já a erguia em direção aos meus lábios.
Minha boca tremia enquanto o cano gelado do revólver se aproximava, sentia as lágrimas escorrerem por meu rosto e pensei se não seria loucura demais morrer daquela forma.
Levei meu dedo até o gatilho e..."
-É tão difíci fazer isso... Está horrível, tenho que começar de novo - o papel foi arremeçado para a lata de lixo enquanto o lápis batucava contra o caderno de forma insistente e ansiosa - se escrever fosse tão simples quantos autores incríveis teriamos? - um suspiro pesado e longo se seguiu após esta frase de lamento - deveria desistir, não nasci para isso...
"Coimbra, junho de 1997, um assassinato no centro da cidade causava alvoroço por toda a redondeza, muitos estavam assustados, fora um crime extremamente brutal e violento que deixara a cidade inteira em alerta.
A polícia estava investigando, junto dela um grupo de detetives de duas mulheres e três homens.
A casa era antiga e de alvenaria, muitos tijolos estavam quebrados e caindo aos pedaços, uma trilha de sangue manchava o chão de cimento e seguia por todos os cômodos, como se fosse uma árvore desenhada com sangue, onde os ramos seguiam por todos os quartos.
Os policiais revistavam todos os quartos, um por um, mas nada encontravam, todos os cômodos estavam vazios, como se todos os móveis tivessem sido arrastados e levados para longe.
O grupo de detetives seguiu para fora onde havia um pequeno balanço de metal enferrujado e um escorregador, os quais haviam sido colocados para a filha do antigo morador.
Ao chegarem ao quintal uma corrente metálica com um gancho em sua ponta perfurava a região próxima ao umbigo do homem que ali morava, o sangue, agora seco, manchava-lhe todo o corpo, seus olhos estavam cortados ao meio e o sangue escorria como lágrimas.
O homem estava ereto sobre o ar, como se houvesse uma tábua apoiando seu corpo, os braços caiam e quase tocavam o chão, a pele era repuxada pelo gancho e parecia rasgar devido ao peso.
Os cinco detetives se aproximaram do corpo e começaram os trabalhos, passavam liquidos por toda a corrente à procura de digitais, cotonetes eram esfregados pelo corpo do homem retirando parte do sangue, qualquer coisa que parecesse suspeito era guardado em uma sacola plástica.
-Vejam isso - disse uma das mulheres pegando uma carta que estava no chão, perto do escorregador.
Os outros se aproximaram enquanto a mulher abria o pequeno envelope para ler a carta.
-"A vida é um tremendo tédio, o mundo mais hipócrita do que nunca, e esse homem mais grotesco e merecedor da própria morte.
Devem pensar que sou louco, ou um psicopata qualquer, mas não faço isso por loucura ou prazer, faço pelos dois.
Esse homem que agora está morto em frente à vocês não possui um passado muito bom, honroso como dizem por ai.
Ele já tirou vidas, destruiu vidas das quais nunca foram divulgadas, ele é um assassino, louco e repugnante que não merecia continuar vivo.
O que ele passou foi pouco comparado ao que ele fez outros passarem, comecemos então do inicio, contando o que ele fez.
Richard Lambert, casado, 45 anos, pai de família, uma bela filha de 22 anos e uma esposa dedicada, porém com segredos tão obscuros que até os mais frios teriam vergonha de conhecê-lo.
Coitada de sua filha, sua primeira vítima, estuprada aos 12 anos por seu próprio pai, depois amordaçada e violentada como se fosse um boneco de pano.
Estuprador foi sua primeira profissão, depois veio assassino, matou o próprio pai, colocou veneno em sua comida, apenas para ficar com a herança gorda que iria receber após à morte de seu velho.
A terceira profissão foi traficante, imaginavam que esse homem fazia isso? Com essa cara de coitado e essa barriga de chop, esses olhinhos claros e a fala mansa, quem diria, não é mesmo?
E por ultimo, mas não menos importante, assassinou sua própria esposa, pois esta queria a separação, e como homem ambicioso que era, não iria deixar a galinha dos ovos de ouro escapar por entre seus dedos tão facilmente.
Simulou um acidente, um incêndio na própria casa, que poderia colocar sua própria voda em perigo.
Mas a ambição cega os homens, o dinheiro os entorpece de tal forma que nem ao menos sabem se estão vivos ou apenas sonhando, horrível não acha?
Depois desse acidente fatal Richard se mudou com sua filha, os estupros voltaram, mais violentos ainda, os atos eram banhados em sangue, dor e lágrimas, até que a garota fugiu, mudou de Estado, até mesmo de país, quem sabe onde ela está agora?
E creio que foi pouco o que fiz, apenas cortar-lhe as iris, perfurar seu ponto de gravidade com um gancho enferrujado e pendurá-lo no balanço foi pouco, nem metade do que eu havia imaginado para ele.
Os maus devem ser castigados."
Ao terminar de ler a mulher deixou a carta cair ao chão, havia sido um choque para si, nunca havia visto uma cena tão atormentadora quanto aquela.
-Alguém tentando fazer justiça com suas próprias mãos - um homem alto e moreno pegou o papel do chão e releu algumas passagens do texto digitado - e pelo jeito não quer que saibamos quem é.
-Se eu fizesse algo assim também não iria querer ser descoberto - comentou um homem loiro, com olhos escuros como a noite e a pele pálida como algodão.
-Precisamos descobrir o nome da filha desse homem, talvez ela possa nos dar pistas - uma mulher de olhos escuros e penetrantes se pronunciou, as mãos pequenas segurando o pequeno saco plástico com cotonetes e pistas que seriam averiguadas mais tarde.
-A agente Rose tem razão, devemos descobrir sobre todos os parentes e amigos desse homem - disse o loiro enquanto procurava algo em seus bolsos - podemos começar pelos vizinhos - o homem tirou um pequeno gravador de seu bolso e o ergueu mostrando aos companheiros.
-Não creio que os vizinhos saibam muita coisa, Luke - a primeira mulher se pronunciou e apontou para a carta - aqui diz que eles se mudaram depois da morte da senhora Lambert, e isso não faz mais de dois meses.
-Mesmo que as chances sejam minimas, temos que procurar mais pistas - o loiro, agora denominado Luke, disse e deu dois passos em direção à casa - vocês virão ou não?
Os quatro detetives se entre olharam e a passos lentos seguiram o loiro para dentro da casa de alvenaria, o chão acimentado era torto e mal feito, e alguns pedregulhos eram chutados conforme eles passavam.
Os policiais que ali estavam os observaram, o grupo era formado por jovens e aquilo tirava o pouco de crédito que possuiam.
Não que fossem muito conhecidos, não chegavam perto de serem renomados, porém eram inteligentes, acima da média local, resolviam mistérios mais rápido que muitos policiais juntos.
Alguns policiais seguiram o grupo com o olhar, outros sairam para o local onde os detetives estavam outrora se espantando com a cena que encontravam lá fora.
As sirenes das viaturas eram altas e chamativas, muitas pessoas circulavam o local à procura de informações, afinal, a curiosidade humana é muito maior que o medo.
Quando os detetives sairam foram bombardeados por microfones e câmeras, perguntas por todos os lados, porém não possuiam resposta alguma para nenhuma delas.
-Desculpe, mas não temos nenhuma informação por enquanto - desculpou-se um dos homens que ainda não havia se pronunciado.
Apressaram o passo ultrapassando os reporteres sedentos por informações e notícias bombásticas, algo que chamasse à atenção, que dominasse a mente dos telespectadores e os prendesse junto à tela da televisão.
A campainha da casa ao lado foi tocada e uma velha de cabelos grisalhos e enrolados a abriu, seus olhos claros demonstravam curiosidade e um certo receio para com os jovens à sua frente.
-Boa tarde, senhora, sou Luke, detetive local e estou procurando pistas sobre o assassinato de Richard Lambert, a senhora poderia contar sobre ele? Como ele era? Se era simpático... sobre a filha dele...
-Não sei nada sobre ele, me desculpe - a senhora estava prestes a fechar a porta, porém o pé de Luke interrompeu.
-Pode ser qualquer coisa...
A mulher se sentindo vencida abriu a porta para os jovens e deixou espaço para que esses passassem.
Os seis seguiram para a sala onde se sentaram em um sofá preto e envernizado, ao centro uma pequena mesa de mármore com fotografias antigas e desbotadas.
-Ele era um homem sério, misterioso, não costumava falar muito, entende? - a senhora mexeu em seus cabelos brancos e sentou-se em uma poltrona afastada do grupo de detetives, estes por sua vez assentiram e incentivaram-na a continuar sua narrativa - ele brigava muito com a filha, mas nunca a vi pelas ruas, parece que trabalhava o dia inteiro e voltava apenas ao anoitecer.
-Compreendo, então ele não era muito conhecido pela vizinhança?
-Meu cachorro, o Toby, não gostava muito dele, latia senpre que ele passava, sabe como são os animais, pressentem coisas que nem imaginamos existir.
-A senhora tinha algum sentimento por ele? Medo, raiva, qlgo do tipo?
-Não, ele sempre foi um homem calado, reservado até, não possuia motivos para temê-lo, ele parecia um homem inocente.
Luke fez mais algumas perguntas para a senhora enquanto os outros quatro andavam pela casa, o piso de madeira rangia levemente a cada pisada.
Uma das mulheres seguiu para o segundo andar entrando em uma da primeiras portas, chegou em um pequeno cômodo praticamente vazio, uma cama de casal estava encostada à parede branca acinzentada e amarelada pelo tempo, parte da cabeceira havia sido destroçada por cupins e pela ação do tempo, o chão de madeira possuia algumas rachaduras assim como o armário de carvalho recostado do outro lado do quarto, as dobradiças e maçanetas metálicas já adquiriam uma coloração amarronzada, deixando evidente o descaso pelo móvel.
O cheiro de mofo era presente no local e invadia-lhe as narinas de forma a incomodar quando respirava, não havia mais nada no cômodo além de uma foto pregada contra a parede, envolvida por uma moldura dourada e com pequenos ornamentos delicados que pareciam flores de ouro.
A mulher olhou para a foto, porém nada lhe chamou a atenção, saiu do lugar da mesma forma que entrou, silenciosamente.
Luke ainda fazia algumas perguntas para a senhora à procura de pistas que pudessem fazer ele sairem do lugar, da estaca zero em que se encontravam, era assustador a forma como não possuia nenhum vestigio do assassino no local do crime.
A agente Rose seguia pelos corredores, suas mãos pequena arrastavam-se contra a parede fria, seus pés pisavam suavemente contra o chão de madeira, de forma que os ruidos se tornavam mínimos, era como se ela não estivesse ali.
-Rose - a garota virou-se com os olhos levemente arregalados ao ouvir seu nome ser pronunciado por uma voz rouca e grave, o que deixou seus pelos eriçados.
-Que susto, Gilbert, não esperava que alguém me chamasse - a morena levou uma mão até seu peito de forma dramática e respirou pesado tentando deixá-lo com remorso, entretanto o rapaz riu-se e a segurou pela cintura, suas mãos firmes e asperas puxavam-na contra si juntando os corpos.
-Por que resiste tanto aos meus encantos, Rose? - o homem a puxou mais contra si e seus lábios roçaram contra a bochecha da garota - você sabe muito bem que é minha garota preferida.
-Gilbert, para, não diga bobagens - Rose o afastou com uma das mãos e tentou se desvincilhar - sabe muito bem que não dariamos certo juntos.
-Por que não? Somos perfeitos juntos, você é bonita, inteligente e simpática, eu sou gostoso, lindo, inteligente e muito mais, somos compativeis - o rapaz sorriu e tornou a se aproximar.
-Não dariamos certo pelo mesmo motivo, peças iguais não montam quebra-cabeças - Rose conseguiu se afastar.
Em sua mente passavam várias ideias de porquê ambos não dariam certo e o mais obvio de todos era que o ego superinflado de Gilbert iria esmagar qualquer vestígio de amor, e não é como dizem por ai, o amor não supera, nunca superou e nunca vai superar tudo.
Quantos casais não haviam terminado após uma traição? Se o amor superasse tudo Romeu e Julieta teriam vivido e superado as diferenças, mas ao invés disso morreram, que morte mais trágica há no mundo senão essa? Morrer por amor, ou por falta dele, as duas mortes se tornam horriveis perante as diversas formas de morrer.
O amor é sofrimento, dar uma parte de si para outra pessoa, arrancar sua essência e encobrir a outra pessoa com alegrias, que sentimento menos individualista há senão o amor? Pensemos bem, caros leitores, o amor é o único sentimento que nos faz colocar as necessidades dos outros acima da nossa própria, tornamo-nos mais humanos ao amar.
Porém o amor é frágil como uma taça de vidro, e perigoso como seus cacos, se pisarmos com força acabamos feridos, se damos demais de nós mesmos nos ferimos mais do que se não tivessemos amado.
Para amar é necessário o equilibrio, tanto do sentimento quanto individual, não se ama uma pessoa quando não se está por inteiro.
Por exemplo, não podemos amar um inteiro se somos metades, não podemos amar com o coração ferido, pois amar com o coração ferido fere aquele que se "ama".
Quando amamos com o coração partido não amamos inteiramente, não damos o melhor de nós, pois o coração ainda dói, um coração aflito vê no outro um inimigo, não um abrigo para se proteger.
É como usar alguém para tapar um vazio que não pode ser preenchido por alguém que não seja nós mesmos.
E Rose sabia disso, sabia de seu coração, que era uma metade incompleta e recheada de dor, não deveria ela amar outro alguém se por dentro estava tão despedaçada quanto aquele copo de vidro que derrubara certa manhã.
Compreendia facilmente que não poderia amar sem amar-se primeiro, iria afundar-se cada vez mais, pois colocaria as necessidades de Gilbert acima de tudo e acima de sua própria vida.
-Poderiamos tentar, minha querida Rose - Gilbert se aproximou e beijou-lhos lábios com ferocidade, seus lábios acariciavam os da garota com certa urgência e necessidade, como se precisasse sentir sua textura suave e seu leve gosto de menta.
As mãos do homem tornaram a segurar-lha cintura com firmeza, seus corpos colados como se fossem um só, um calor emergiu por entre o peito de Rose, estava em brasas, ardendo em chamas, todavia afastou-se assim que recuperou sua lucidez.
-Não, Gilbert, não podemos - a jovem desvencilhou-se do rapaz e andou a passos rápidos para a sala onde o grupo havia se reunido novamente - encontraram algo?
-Nada, agente Rose, sinto como se estivéssemos dando voltas e voltas em circulos sem sair do lugar - comentou Luke mexendo em seus cabelos curtos e loiros enquanto seus olhos inspecionavam Rose de cima a baixo - e quanto a senhorita? O que achou por aqui além dos lábios do Gilbert?
-Luke, eu... Você... Eu não encontrei nada...
Luke balançou a cabeça de forma negativa e bateu o pé direito algumas vezes contra o chão demonstrando sua irritação, o rapaz era o mais velho do grupo, porém o mais rigido, insistia para que os colegas seguissem as regras a risca, não gostava de desacatos ou atos indevidos no horário de trabalho.
-E quanto à você, agente Gilbert, espero que isso não torne à acontecer novamente, dessa vez farei vista grossa e deixarei passar com esse pequeno aviso, porém da próxima não serei tão flexivel, estamos etendidos?
-Claro, Luke, entendo perfeitamente e isso não tornará a se repetir.
O grupo de detetives se despediu da senhora e caminharam para o local de trabalho, que não ficava tão distante, apenas poucas quadras dali.
Ao chegarem ao local foram para duas salas observar todas as pistas, os computadores foram ligados enquanto acessavam os arquivos policiais a procura de pistas aqui certamente seria mais dificil do que poderiam imaginar.
Mal sabiam eles que o assassino estava mais perto do que eles imaginavam e que talvez, só talvez, chegariam perto de descobrir quem ele era, mas por enquanto era apenas um suspeito, um suspeito sem rosto, sem nome, sem digitais, sem caligrafia, sem dados, sem absolutamente nada.
Porém eles não iriam desistir, não podiam desistir agora, vidas dependiam deles e se não encontrassem o assassino as mortes aconteceriam por muito mais tempo do que eles podem imaginar, de forma mais violenta e sangrenta do que a cidade de Coimbra já havia visto em toda a sua história de crimes.

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