Anabelle, uma jovem promissora, tem em suas mãos um grande talento literário, o qual quer demonstrar ao mundo inteiro, porém seu corpo faz com que os outros a rejeitem.
Não que ela fosse gorda por querer, ela nem ao menos comia corretamente, estava em sua genética ter o corpo forte, ossos largos, quadris largos, peitos grandes, bunda grande, tudo em larga escala, inclusive a barriga.
A jovem de 18 anos ingressara na faculdade de Letras da universidade de Coimbra, mundialmente conhecida e requisitada por muitos.
A jovem de cabelos castanhos assim como seus olhos, se esforçava e muito para não se atrasar nas matérias, porém era-lhe dificil quando se é subjulgada por todos a sua volta.
Anabelle vivia em uma contradição, sabia que podia, tinha total consciência disso, mas as palavras dos outros pesavam-lhe como toneladas em suas costas a mantendo descrente de todo o seu potencial artistico e literário.
-Ela é tão ridícula - cochichou uma garota, que sentava-se próximo a Anabelle, para sua amiga - você viu o vestido dela? Como se ela fosse uma pin-up para usar poá.
As duas riram e Anabelle encolheu os ombros sentindo seus olhos marejarem, era a décima vez que falavam sobre si tão descaradamente e apesar de não demonstrar aquilo doia mais do que facadas.
-Tão gorda que as bolinhas viram bolas de basquete - e as duas explodiram em gargalhadas altas, junto com parte da sala que ouvia a conversa.
-Deveria fazer uma dieta - comentou outra garota se juntando a conversa.
-Pensei que na faculdade não entrasse animais, mas pelo jeito existem orcas frequentando esse local - e uma nova manifestação de gargalhadas deu inicio.
-Parem, silêncio, irei começar a nossa aula de literatura - pediu uma mulher roliça, seus sapatos pretos de salto alto e bico fino batiam contra o tablado de madeira e o som ecoava por toda a sala.
Anabelle suspirou cansada, seus olhos ardiam pelas lágrimas que segurava, seu peito ardia e queimava, como se estivesse em chamas e sento perfurado por uma espada.
-Anabelle, leia por gentileza, o poema de Alberto Caeiro, heterônimo de nosso querido Fernando Pessoa, "O guardador de rebanhos".
A jovem esfregou os olhos secando os resquicios de lágrimas e tossiu levemente ajeitando-se na cadeira, seus olhos percorreram as pequenas letras de seu livro aberto e logo sua voz levemente rouca foi ouvida.
-"O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso."
E nesses três versos pequenos Anabelle se encontrou, achou nesse pequeno pedaço um sentido para viver, uma inspiração, algo para seguir.
Afinal, o que ela poderia pensar do mundo sendo este tão grande? Se pensasse apenas seria tão infimamente pequeno, e talvez um sei lá seja a melhor resposta para tudo.
-"Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa."
-O que compreende desse pequeno trecho, Anabelle? - perguntou a professora andando pela sala enquanto o barulho de seus saltos batendo contra o chão ecoavam nos ouvidos dos alunos.
-Eu compreendo que Alberto Caeiro era um mestre da retórica, que possuia uma sabedoria impressionante e que poderia levar qualquer pessoa através de seus argumentos - a jovem respirou fundo, puxando o ar pela boca e o soltando lentamente - compreendo que somos tão insignificantes perante o mundo que o pouco que sabemos se torna quase nada, como comparar a Terra ao universo inteiro, para o universo não somos nada e nos achamos tão grandes... E nessa parte "por isso não erra..." Eu entendo que não estamos errados quando fazemos algo pelo qual não sabemos o que é... Errar sem saber é melhor do que errar sabendo que está errado, como podemos culpar alguém por um crime se ele não sabia que era um crime?
-Anabelle, você precisa se focar mais no que quero lhe dizer - a professora suspirou e aproximou-se da morena - lhe dou até o fim do ano para escrever um livro, pode ser curto, onde você deve abordar temas como traição, o mundo, amor, morte e loucura, quero ver foco, confio em sua capacidade - a professora olhou em seu relógio de pulso e balançou a cabeça negativamente - a aula se encerra por aqui, tenham um bom fim de tarde e estudem para a prova da semana que vem.
Os alunos guardaram o material e seguiram para fora da sala, Anabelle manteve-se quieta em seu lugar, sua mente fervilhava, não poderia imaginar-se escrevendo uma crônica, muito menos um romance.
Era jovem demais para compreender a vida, inexperiente demais para falar do amor, ingênua demais para descrever a morte, e por muito tempo imaginou-se em outro curso, não parecia se encontrar nas palavras.
Mas sua paixão por ler era tão grande que ultrapassava as barreiras que sua mente impunha, podia ver-se sorridente com pilhas de livros sobre a escrivaninha, com seu gato alaranjado sobre seu colo ronronando enquanto seus dedos batiam contra as teclas do computador.
Anabelle se levantou, pegou sua bolsa e saiu, os corredores estavam vazios, era sempre assim, todos os dias a garota ficava na sala esperando que todos os alunos saissem para só então voltar para casa.
Tinha medo de sair e sofrer alguma agressão, sentia-se insegura perto das pessoas, como se elas pudessem feri-la a qualquer instante, assim como sempre fizeram.
A passos lentos Anabelle seguiu para fora da enorme faculdade, seu vestido preto incomodava-a, porém era uma das poucas roupas que ainda possuia.
Seus sapatos estavam apertados e doia-lhe a cada pisada, logo ficariam bolhas em seus pés gorduchos.
Anabelle apressou-se assim que ouviu passos atrás de si, odiava aquela sensação de estar sendo seguida, seus olhos percorreram a rua vazia e a jovem atravessou correndo, um carro passou perto de si, mas felizmente não a ferira.
-Olha por onde anda, baleia - gritou o motorista buzinando furiosamente, seu carro estava acelerado, em uma velocidade acima da permitida, especialmente por ser próximo ao ambiente escolar.
Anabelle esfregou os olhos que lacrimejavam e se pôs a correr, na metade da trajetória abaixou-se no meio-fio e começou a chorar.
O choro vinha do fundo de seu ser, era dolorido e sentido, seus soluços eram altos e incontidos, chorou por todos os anos de humilhação e sofrimento que passara.
-Por que as pessoas são tão crueis? - murmurrou a garota apoiando seu rosto entre as mãos enquanto suas lagrimas quentes escorriam por seu rosto pálido e translúcido - "os bons vi sempre passar.
No mundo graves tormentos.
E para mais me espantar.
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos" Camões me compreendia mais do que eu imaginava - citou a jovem com a voz embargada pelo choro.
E ali a jovem chorou por minutos que pareceram intermináveis, derramou todas as lágrimas contidas por anos, deixou as mágoas derramarem-se como em uma cascata de tormentas, uma cachoeira de dor, chorou até não lhe restar mais lágrimas para chorar.
Aos poucos Anabelle se recompôs, retirou seus sapatos e tornou a caminhar, precisava voltar para casa, nem ao menos havia almoçado e já escurecia.
Seus passos eram apressados pela rua escura e vazia, seus olhos percorriam rapidamente toda a extensão, procurando vigiar cada canto, a jovem sentia-se acuada e a cada barulho mínimo que ouvia acelerava mais em sua caminhada.
Ao longe podia ver sua velha casa no fim da rua, a parede, outrora pintada de branco, agora estava cinzenta, amarelada, uma cor doentia e lascas de tinta caiam todos os dias, o jardim mal cuidado dava um ar melancólico ao lugar, as flores murchas entristeciam o que um dia fora bonito e animado.
Anabelle entrou em sua casa, seus sapatos foram deixados perto da porta, seus pés descalços tocaram o piso frio de cerâmica e um arrepio percorreu-lhe a espinha.
-Pai? Está em casa? - chamou a garota trancando a porta atrás de si e seguindo para a cozinha.
Um homem de cabelos grisalhos estava sentado a mesa, seu olhar fixado na parede a sua frente, olheiras profundas embaixo de seus olhos, como se fossem manchas arroxeadas de um soco, um copo com liquido transparente em suas mãos enrrugadas e um cigarro acesso pela metade sobre o cinzeiro.
-Pai... Está bebendo e fumando de novo? O senhor havia me dito que seria a ultima vez - Anabelle suspirou seguindo para a geladeira e pegando duas cenouras e uma maça - como foi na reunião hoje?
-Sabe que não posso viver sem isso, Anabelle, já estou no fim de minha vida mesmo, o que me custa aproveitar fumando e bebendo enquanto posso? - o homem levou o copo aos lábios e sorveu parte do liquido.
-Por favor, pai, não quero que morra cedo...
-Já estou morto há muito tempo, Anabelle, olhe para mim - o velho bateu o copo contra à mesa e este se espatifou em milhares de cacos - sou apenas um velho raquitico como meu pai foi um dia, não tenho mais vida, nem ao menos posso sair dessa casa sem ser chamado de louco ou assassino...
O homem parou de falar de repente, suas mãos seguiram para o peito e seus olhos se arregalaram, seu corpo foi tombando para o lado e Anabelle correu em seu auxilio, segurou-lhe pelo tronco e o levou para a sala.
Suas mãos trêmulas percorreram a comoda à procura do telefone, assim que o achou discou para o vizinho pedindo ajuda.
Logo o homem da casa ao lado entrou desesperado, a chave do carro em suas mãos e o olhar assustado.
Os dois ergueram o velho semi-inconsciente até o carro, Anabelle tremia e mais lágrimas brotavam em seus olhos, não queria perder o pai daquela forma, era-lhe o único parente vivo, seu único amigo e companheiro.
-Por favor, Senhor, não deixe que ele morra assim - orava Anabelle enquanto prendia o cinto ao seu redor e olhava para o pai deitado no banco trasseiro - ele não pode morrer, por favor, ele é tudo o que tenho, minha família.
O vizinho sentou-se no banco do motorista, as mãos tremiam e seus olhos percorriam do retrovisor até Anabelle, sentia-se mais perdido do que nunca, jamais havia passado por essa situação desesperadora de ter uma vida em suas mãos.
O carro velho foi ligado em um estrondo do motor, Anabelle levara os dedos até sua boca mordiscando a pele que se levantava abaixo de suas unhas curtas, em um ato de nervosismo.
-Logo chegaremos lá - repetia o vizinho no decorrer do caminho - vamos, Becky, não desista agora - dizia o homem pisando no acelerador do carro e o pneu cantava contra o asfalto.
Anabelle fechara os olhos, suas mãos apertavam-lhe os olhos e seus lábios fechados seguravam os soluços que queriam escapar.
Passaram-se minutos que pareceram uma eternidade até chegarem ao hospital, Anabelle saiu do carro as pressas e correu pelo hospital implorando por ajuda, dois enfermeiros seguiram a jovem até o carro levando a maca dura e velha.
Rapidamente o homem foi colocado sobre o objeto e foi carregado para dentro do hospital, Anabelle os seguiu, mas foi impedida de prosseguir assim que entraram na sala de emergência, o vizinho chegou logo em seguida, seu rosto estava pálido e dava a sensação de que desmaiaria a qualquer instante.
-Espero que ele fique bem... Ele é um bom homem apesar de tudo... - comentou o homem sentando-se ao lado de Anabelle.
-É, também espero... - sussurrou Anabelle, sua voz rouca e embargada pelo choro.
-Creio que não se alimentou ainda, quer tomar um suco ou um lanche natural? Acho que vi uma pequena lanchonete lá perto do estacionamento...
-Não estou com fome - a garota olhou para os próprios pés ainda descalços, na correria havia esquecido de calça-los, mas não lhe fazia diferença, sentia-se melhor assim.
-Vamos comer algo, saco vazio não para em pé - comentou o vizinho em um tom animado tentando alegrar a jovem que balançou a cabeça de forma negativa - eu pago, não se preocupe, pode pedir o que quiser.
-Não estou com fome, de verdade, obrigada por oferecer - Anabelle abaixou o rosto quando sentiu seus olhos marejarem.
Estava com fome, mas não se importava, estava preocupada demais com tudo para dar importância à algo tão banal quanto comer.
A jovem erguia a cabeça todas as vezes que uma enfermeira passava em sua frente, o nervosismo aumentando conforme o tempo passava e não recebia notícias.
Seu vizinho havia partido a deixando sozinha naquele hospital, as paredes cuidadosamente pintadas de branco causavam nauseas e davam-lhe uma sensação de vazio interior tão profundo que lembrava-lhe um poço fundo e sem fim, sentia-se como Alice caindo no buraco e vendo os objetos voar ao seu redor.
-Senhorita Anabelle? - uma mulher magra e de rosto pintado delicadamente por um delineador preto fino e lábios rosado se aproximou da jovem ajeitando seu jaleco branco - seu pai teve um ataque cardíaco e terá que ficar esta noite em observação aqui no hospital.
-Ele está bem? Posso vê-lo? - Anabelle ergueu-se e em seus olhos um brilho de esperança surgiu, porém o brilho logo se apagou ao receber a resposta.
-O quadro dele é instável, por isso terá que ficar em repouso e terá que ficar em observação, sinto muito, mas a senhora não poderá vê-lo por motivos médicos, o seu pai não pode ter fortes emoções agora, é melhor a senhora voltar para casa e amanhã pode retornar - Anabelle suspirou cansada e balançou a cabeça afirmativamente.
-amanhã retornarei, então, obrigada - Anabelle foi a passos lentos para fora do hospital, seu coração comprimido pelo medo de perdê-lo.
O caminho era longo, mas a dor era maior, muito maior do que tudo, o que tornava a distância mais comprida ainda.
Anabelle parecia se arrastar de cansaço, seus pés descalços eram arranhados contra o chão de concreto e pequenas feridas eram feitas pelos pedregulhos soltos pelo chão.
As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto como uma avalanche, nem ao menos reparara quando trombara contra um rapaz que vinha na direção contrário.
-Olha por onde anda, elefantelle - murmurrou o rapaz que Anabelle reconheceu como um de seus colegas, que apelidara-a de elefantelle e tacava-lhe pequenas bolas de papel com ofensas todos os dias.
-Perdão - Anabelle se pôs a correr, sentia a adrenalina invadir seu sangue, seu coração pulsava freneticamente enquanto a torrente de lágrimas embaçava sua visão.
As pernas doiam e a cada passo era como se seus ossos saissem do lugar e retornassem de forma dolorosa.
Os joelhos latejavam pelo exercicio que há muito não praticava e o cansaço não tardou em chegar.
A jovem sentou-se na calçada, a respiração pesada e o coração batendo forte, as pernas formigando e sua cabeça girava sem parar, como um pião.
Aos poucos seus sistemas foram se reestabelecendo e a jovem se ergueu, decidiu por caminhar, sem corridas ou esforço desnecessário, chegaria em sua casa de todas as formas e já não havia quem lhe esperasse voltar.
Anabelle chegou após muita caminhada, a casa vazia tinha um cheiro metálico, enferrujado e esquecido, cheiro de mofo e velharia, parecia solitária e escura, correntes de ar frias percorriam os cômodos e a jovem abraçou-se tentando aquecer-se, porém fora inutil, ainda sentia frio.
Lentamente trancou a porta e foi para seu quarto, suas mãos tatearam as paredes procurando o interruptor e ligando a luz, o quarto era claro, apesar de velho, os móveis em sua maioria eram de madeira e estavam destruídas pelo tempo.
Anabelle pegou um caderno em branco e colocou-se a escrever, seria a primeira vez que escrevia algo do tipo, não levava jeito para histórias, apenas para lê-las e senti-las dentro de si, não sabia se conseguiria transmitir tudo aquilo que queria passar.
Assim como seus autores favoritos faziam com suas obras, traziam riso, o choro, o amor, a alegria, e Anabelle sentia-se impotente perante à tantos escritores famosos e de grande prestígio.
Um suspiro denso escapou-lhe pelos lábios e o lápis girou entre seus dedos duas vezes antes de sua ponta encontrar-se contra o papel em branco.
O lápis moveu-se algumas vezes formando uma frase curta e que deixou a jovem decepcionada com seu resultado.
-Não é tão impactante assim... Isso não é conto de fadas - Anabelle pegou a borracha e apagou o que havia escrito.
Novamente o lápis foi contra o papel e a mão da jovem moveu-se algumas vezes.
Os olhos castanhos percorriam o que havia sido escrito e um brilho de frustação refletia em seu olhar, não parecia satisfeita com o resultado inicial de sua obra.
-É tão difícil fazer isso... Está horrivel, tenho que começar de novo - a morena rasgou a folha e jogou para um pequeno cesto de lixo.
Passou longos minutos em silêncio, refletindo sobre o qe iria escrever, procurando as palavras certas para usar, deitou-se na cama e fechou o caderno, sua cabeça latejava e as ideias vinham de forma desconexa, apenas imagens confusas e sem som.
-Se escrever fosse tão simples quantos autores incriveis teriamos? - a jovem bateu o lápis contra o caderno em um ritmo lento, suspirando com pesar - deveria desistir, não nasci para isso...
A garota jogou-se contra a cama, sentia-se inutil, teria ela escolhido o caminho errado para trilhar? Será que as palavras já não eram suas amigas?
Talvez fora loucura ingressar para a faculdade, a maior loucura que cometera e a ideia de desistir nunca lhe soara tão aceitável assim quanto agora.
O lápis rolou de sua mão e seguiu para longe, indo parar embaixo do armário, Anabelle suspirou, não iria pegá-lo agora, deixou o caderno no chão e cobriu-se até a cabeça, sua barriga roncou, porém a ignorou totalmente, não possuia cabeça para comer algo, seu corpo estava cansado demais assim como sua mente.
Logo a inconsciência puxava-lhe para o sono profundo onde o mundo era bom e as pessoas felizes.
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Vidas paralelas
RomanceEleonor, uma escritora falida, em plena decadência de espirito e de dinheiro, sem fama, sem fortuna e recheada de vícios. Anabelle, uma jovem sonhadora, que almeja alcançar a fama através de seus livros. Mal sabem elas que suas vidas estão mais próx...