Capítulo 4 - Vermelho e Verde

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Eu estava outra vez no chão. Não conseguia sequer pensar com o som do meu coração pulsando acelerado contra as costelas. Instintivamente estiquei o braço por sobre a cabeça, procurando a aljava e ouvi o baque dela caindo. Não pararia de lutar. Consegui agarrar uma flecha e a cravei com força na perna, daquele verme. Meu atacante urrou arqueando o corpo para trás. Eu tateava as cegas acima da minha cabeça por outra flecha, mas então ele surgiu.

Não sabia quem era de início, apenas vi quando ele suspendeu o homem pelo pescoço. Me apoiei nos cotovelos e consegui ver o que acontecia. O recém chegado estava de costas para mim e atingiu meu atacante com um soco. Ele não se satisfez e desferiu outro golpe, pude ver o sangue cobrir o rosto do homem, quando seu nariz se partiu. Eu o queria morto, mas me ocorreu a confusão que seria se deixasse aquilo acontecer. Ainda mais ali.

- Pare! - disse numa voz fraca que nem parecia a minha. - Deixe ele ir! Larga ele! - Berrei por fim. O homem o atirou a um canto, como se fosse uma boneca. Não precisava olhar para saber que o rosto daquele animal devia estar arrasado. O monstro grunhiu baixo e juntou as últimas forças para fugir dali, bufando. Aparentemente o recém chegado conseguia dar um recado de ameaça muito mais claramente do que eu. Fiquei olhando a porta bater enquanto ele desaparecia. Nunca poderia denunciar aquilo. Se me envolvesse com a polícia e eles vissem que meus registros eram falsos, seria deportada antes que percebesse. O governo fazia vista grossa a minha situação legal, contudo se fosse esfregada na cara deles ficaria mais difícil. Voltei meus olhos para meu salvador. Loki.

Acima da minha surpresa com sua presença ali, estava minha surpresa pela expressão no rosto dele. O jeito como ele me encarava. Desagrado, repulsa. Me encolhi repentinamente envergonhada. Tentei cobrir o sutiã com a alça esfarrapada.

- Ele merecia morrer - Loki cuspiu as palavras.

- Eu sei... - murmurei olhando para os meus pés ensanguentados. Ele franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça como se eu fosse algo inacreditável.

- Ele não...? - perguntou deixando a questão no ar. Neguei com um aceno da cabeça as lágrimas recomeçando. Loki olhou ao redor parecendo atordoado. Por fim, se aproximou de mim. Instintivamente me encolhi. Estendeu uma mão para que eu pudesse levantar. Assim que o fiz, uma dor lancinante percorreu meus pés. Um gemido escapou pela minha boca e perdi o equilíbrio. Com um gesto simples ele me apoiou, uma das mãos segurando a minha, a outra nas costas. Olhou com desagrado para os cortes que ainda sangravam. Sem me questionar, soltou minha mão e apoiou meus joelhos, me carregando. Eu não estava em condição de discutir. Eu não queria discutir. Só queria que me levasse embora dali.

- Jarvis? - chamei enquanto ele me levava pelo corredor, absolutamente calado, uma expressão dura em seu rosto.

- Senhorita? - A inteligência artificial atendeu prontamente. Eu não sabia por que ele não havia pedido socorro. Tinha em sua programação a tarefa de identificar perigo e intervir. Descobriria o motivo mais tarde.

- Mande os droides de limpeza cuidarem da bagunça, por favor - murmurei quase inaudível. - Não conte a ninguém o que aconteceu... tranque as portas quando sairmos.

- Sim, senhorita.

Quando deixamos o edifício, a chuva havia parado e a brisa fresca me envolveu trazendo alguma calma. Loki olhou para o céu.

- Deixe que ela saiba - falou numa voz clara. Não sabia o que ele estava dizendo e não me interessava. Seus olhos se voltaram para mim e me senti muito ciente do estado em que devia estar. A vergonha me corroía, mesmo a culpa não sendo minha. - Você ainda mora no mesmo lugar? - perguntou.

- Você ainda lembra o lugar? - me ouvi dizendo. Ele levantou as sobrancelhas indicando que isso não era uma resposta. - O apartamento ficou imprestável. Me mudei para aquele prédio azul - expliquei apontando.

Ele caminhou firme, como se me carregar não fosse esforço algum. Passamos pela mesma rua onde eu fui atacada. Escondi o rosto no peito dele. Chegamos à portaria do prédio que já estava vazia. O porteiro devia ter ido embora bem mais cedo. Eu morava na cobertura. Vigésimo andar.

- Jarvis, abra a porta, por favor - pedi, ao sairmos do elevador de frente para minha porta. Loki a empurrou usando um pé e entramos. Ele me pôs sentada no sofá com uma gentileza que não imaginava possível da parte dele. Sentou-se numa poltrona preta e de espaldar alto. Jinggles surgiu sabe Deus da onde e se sentou ao lado dele. Loki me encarava. Eu me sentia uma boneca de trapos. Repentinamente me senti relaxada e tranquila, mas sabia que aqueles sentimentos não me pertenciam. Meus olhos encontraram os dele e senti que seria capaz de rir. Aquilo me irritava. - Pare com isso! - protestei. Ele pareceu levemente surpreso. Alisou o pelo de Jinggles com uma mão, desviando os olhos pela janela para a vista noturna. Eu senti a tristeza se abater sobre mim novamente. Como uma boba me ouvi falando.

- Quer beber alguma coisa? - Loki me encarou como se eu fosse maluca. Talvez eu fosse. Só não queria pensar.

- Eu jamais beberia algo preparado por mãos humanas - me respondeu friamente. Ergui as sobrancelhas um pouco surpresa. Tanto faz.

Eu precisava de um banho. Levantei me apoiando na parede e fui até o banheiro. Seus olhos me acompanharam até sair do seu campo de visão. Meia hora depois voltei para a sala e ele estava exatamente no mesmo lugar, acariciando Jinggles e olhando para fora através do vidro da varanda. Eu havia enfaixado meus pés e vestia um shortinho e uma blusinha de flanela, ambos laranjas com um grande urso estampado. Devia parecer que estava em chamas com meus cabelos combinando. Ele mal me olhou.

Sentei no mesmo lugar de antes e os olhos dele finalmente pousaram em mim. Legal, agora minha pele combinava com todo o resto. Loki levantou e foi até a porta da varanda, abriu e ficou parado enquanto o vento noturno entrava. Minha pele ficou arrepiada. Como podia ser tão quente de dia e a essa hora tão frio?

- Você vai ficar doente - Alertei como uma boba. Ele estava usando uma roupa fininha e tinha largado a cota de couro no lugar. Jinggles estava deitado sobre ela. O homem inclinou levemente a cabeça na minha direção, me olhando com o canto dos olhos.

- Não, não vou - rebateu, simplista. Eu suspirei. Teimoso. Levantei e fui até o quarto de hóspedes. Tirei o cobertor branco que estava na cama, repleto de pelos pretos de gato. Troquei por um outro vermelho. Voltei pelo corredor e coloquei a cabeça na sala me apoiando com as mãos na parede. Ele tinha vestido a cota. Algo que lembrava um sorriso percorreu meu rosto.

- Loki - chamei. O homem fez um movimento com a cabeça indicando que estava me ouvindo, sem no entanto me olhar. - Pode vir aqui? - O homem suspirou, se voltou impaciente me seguindo pelo corredor. Chegando ao quarto, indiquei a cama para ele. - Se você não tem aonde ir, pode ficar aqui. - Sabia que estava escondido. Eu não queria falar sobre a minha noite e até então ele não havia tentado. Também não falaria sobre a dele, já sabia o suficiente. Tinha fugido de Asgard e estava ali. Na minha casa. A maioria dos americanos estaria apavorado. Mas eu não sou americana.

O deus olhou atentamente para o quarto. A cama de solteiro encostada numa parede, um closet que eu ocupava com roupas de cama e toalhas, uma mesinha de cabeceira, um abajur, um tapete felpudo, um painel de comando e um quadro que ocupava quase toda a parede. Pepper havia pintado. Senti vergonha. Era eu de perfil, atirando. Estava até bem bonito na verdade, porém era constrangedor mesmo assim. Ela me pintou com cabelos soltos, eu raramente atirava daquele jeito. Loki ergueu os olhos para mim.

- Você deve ter inteligência suficiente para saber que não preciso de nada vindo de um ser humano, não é? - questionou desdenhoso. Suspirei e abri a porta do meu quarto que ficava ao fim do corredor.

- É, me ocorreu algo assim, mas tenho quase certeza que vai preferir ficar aqui do que ir procurar por Thor - falei áspera. Se ele sabia debochar eu podia jogar o mesmo jogo.

- Ele ficou em Asgard - Loki fez questão de me corrigir. Eu sorri debochada.

- Então eu sou mesmo sua única opção? - Os olhos dele se estreitaram perigosamente. Hora de ir deitar. - Se precisar de alguma coisa, pode chamar.

- Não acha mais provável que você precise de mim? - Ele disse passando pela porta. Eu olhei para minha mão arranhada no batente. Era bem provável mesmo.

Fechei a porta e me deitei. Era uma completa loucura Loki estar no meu apartamento, contudo como eu poderia negar? Na verdade, não queria ficar sozinha. Chorei em silêncio até dormir. Esperava poder ter um resto de noite sem sonhos, mas claramente eu não teria essa sorte.

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