IV

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Assim

Sucedeu assim

E foi tão de repente

Que a cabeça da gente

Virou só coração


"Sucedeu assim"

(Tom Jobim e Marino Pinto, 1957)


Por um momento, o fato de estar vivo deixou-o extremamente constrangido. Não que fosse capaz de lembrar-se exatamente dos eventos da noite passada, mas suas parcas e desfocadas recordações eram suficientes para que ele se repreendesse em pensamento. Recortes de seu atrevimento passeavam por sua mente como fotografias: suas palmas fortemente enlaçadas às de Kimhan, quando não estavam tateando seu paletó ou sua camisa social; a aproximação de seus lábios dos alheios, num movimento absolutamente enxerido e revelador de seus desejos; seus olhos encarando os dele – e os lábios dele, afinados e aparentemente tão macios...

Por um momento, percebeu-se fitando-os novamente - uma vez mais, como se reencontrasse um velho amigo ou um novo desejo. Estavam levemente brilhantes em razão do consumo de café. "Certamente compartilham do mesmo sabor de grãos moídos", pensou. Suas órbitas, então, ascenderam até alcançarem aquele par de olhos castanho-escuros. Mal conseguia enxergá-los durante as noites em que se encontravam, estivesse ele bêbado ou sóbrio, pois o bar que frequentavam era escuro demais para que isso fosse possível. Portanto, jamais o havia visto com tanta nitidez. Imaginou que talvez fosse por isso que se perdera facilmente em seus traços. Desviou o olhar.

— Ah... Peço perdão pelo vexame a que te expus... — Murmurou coçando a nuca e passeando com as órbitas pela mobília ao redor do homem.

— Todo consumidor de álcool tem sua primeira situação de exagero. — Kimhan riu, bebericando um pequeno gole do conteúdo de sua xícara e relevando o fato de o outro tê-lo olhado tão demoradamente. Afinal, desejava ter os olhos alheios voltados só para si.

— Gostaria que eu te servisse um pouco de café? Pode te ajudar a lidar com a ressaca.

— Ah... tudo bem... Então irei me sentar, sim?

— Sinta-se como se estivesse em casa. — Kim fez um gesto com o braço que segurava a caneca, indicando que seu convidado poderia ficar à vontade.

O jornalista assentiu antes de dar alguns passos até a mesa de jantar, localizada no centro da cozinha. Com cuidado, ergueu uma das cadeiras que ali estavam, evitando arrastá-las no chão. Kimhan aproximou-se pacientemente, recolhendo uma xícara, um garfo e um pires do amadeirado armário de parede localizado acima da pia. Após pôr a louça sobre a bancada onde estava seu convidado, pegou uma colher de chá de dentro de uma das gavetas do balcão. Tentou, enquanto isso, iniciar um novo tópico de conversa:

— Você me contou que é um jornalista...

— Isso... — Chay aproximou os utensílios de si, mas recusou respeitosamente o adoçante que lhe foi oferecido em seguida. — Eu não costumo consumir com açúcar.

— Sem problemas.

Devolvendo o açucareiro para o lugar de onde o tinha retirado, WIK encheu uma chaleira com água encanada, acendeu uma das bocas do fogão e colocou-a ali para ferver. Logo após isso, empunhou uma pequena cafeteira italiana[1], retirou seu filtro, descartou o pó de café passado — substituindo-o, então, por uma porção inutilizada — e preencheu seus reservatórios inferior e superior com um tanto mais de líquido da torneira. Encaixou e rosqueou as três partes, colocando o objeto para aquecer em fogo brando, antes de prosseguir:

[PT-BR] Fade-a bohemian love story.Onde histórias criam vida. Descubra agora