Fez-se uma pausa no tempo
Cessou todo meu pensamento
E como acontece uma flor
Também acontece o amor
"Sucedeu assim"
(Tom Jobim e Marino Pinto, 1957)
Kimhan foi a primeira e única pessoa com quem Porchay dividiu a mesma mesa em todas as noites nas quais frequentou aquele estabelecimento.Os dois homens começaram compartilhando momentos de silêncio e de apreciação auditiva das atrações. WIK gradualmente percebeu que não era que seu novo companheiro de noites desprezasse o trabalho daquelas pessoas, incluindo o dele; na verdade, o compositor preferia dar-lhes unicamente um par de ouvidos atentos e sensíveis a cada minúcia, de modo mais devoto do que muitos outros que punham os pés ali. Havia algum motivo pelo qual não os encarava, mas isso não implicava desinteresse de sua parte.
Isso o fez desejar, mais ainda, ter seus olhos só para si.
Um par de teimosos e reservados olhos que não se voltavam a ninguém.
Kimhan, é digno de nota, era alguém extremamente paciente e obstinado. Damas e cavalheiros cortejavam-no frequentemente, mas ele preferia sentir-se incluído na bolha em que, logo percebeu, o aspirante a compositor se refugiava. Aguardava a melhor ocasião para investir mais diretamente no curioso homem que, bebendo e fumando moderadamente, passava todo o seu tempo rascunhando.
E o admirava.
Aproveitava-se da mudez partilhada para contemplar as feições alheias, que denunciavam uma idade por volta dos 28 anos: pele parda; olhos castanho-escuros, como os dele; lábios carnudos e de tom puxado para o róseo, sem perder a predominância de uma atrativa cor de caramelo; nariz de ângulo levemente curvado, cuja ponta mostrava-se discretamente achatada, dificultando-lhe o bom uso de seu par de óculos quando mantinha a cabeça baixa. Reparava em como Chay constantemente ajustava as lentes sobre seus contornos.
Sorvia. Sorria. Aguardava.
Porchay parecia ter se adaptado à presença do artista. Apesar de trocarem poucas palavras, ele parecia atento às historietas do par, que gostava de contar uma coisa ou outra sobre suas noitadas de música por aí, aparentemente sempre respeitando sua abertura para o diálogo. Também não recusava mais as doses de gin que lhe eram oferecidas. Ou as investidas que recebia.
Entre um shot e outro, trocavam olhares.
Entre um rascunho e outro, recebia carícias em suas panturrilhas.
— Por que você costuma manter o olhar baixo, Chay? — Perguntou Kimhan, uma dose de gin entre os dedos polegar e indicador da mão direita. — Eu gosto de contemplar a cor de suas íris. Combina com a de seus lábios.
Porchay tentava fingir não ter ouvido a segunda metade da fala do colega.
— ... Eu me sinto desconfortável. — Respondeu enquanto expirava fumo, disfarçando sua timidez crescente. Após isso, pousou o cigarro sobre o cinzeiro, devido ao que algumas cinzas despencaram da estrutura cilíndrica. Um discreto fio acinzentado ascendia a partir do objeto.
WIK bebericou a bebida que empunhava e apoiou a mandíbula em uma das mãos.
— Seus olhos são tão bonitos para permanecerem apontados apenas para folhas de papel...
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[PT-BR] Fade-a bohemian love story.
Fiksi Penggemar#1 - boemia (18/03/2023) #2 - existencial (18/01/2023) Certo dia, indo até o quarto do seu falecido bisavô - Porchay - com a finalidade de realizar o último desejo deste em vida, Venice não resiste à curiosidade e acaba abrindo a caixa que o senhor...