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Não poderia supor

Que o amor me pudesse prender

Abriu-se em meu peito um vulcão

E nasceu a paixão

"Sucedeu assim"

(Tom Jobim e Marino Pinto, 1957)

♤~♤~♤

Kimhan espiava, entre uma canção e outra, o canto do bar em que Porchay costumava sentar-se silenciosamente, de cabeça baixa, e perder-se entre rascunhos e apreciações auditivas de música boêmia. Estava vazio. Somente então é que se deu conta de que havia se acostumado demasiado com a presença do homem, a ponto de tê-la como certa. Aquele assento, o qual curiosamente não era ocupado por outro alguém na ausência do rascunhador, figurava no salão mal iluminado tal qual um lugar marcado, preenchendo Kim com uma incômoda expectativa.

A presença-ausência de Chay brincava com seus sentidos como se fosse um fantasma cuja forma de algum modo se presentificava, levando o cantor a verificar sua materialidade momento após momento. Seus olhos buscavam contentar-se com todas e todos ali que devotavam não apenas ouvidos, mas também olhares, mas vez ou outra escapavam. Ao dar-se por si, o músico percebia-se encarando novamente uma pequena mesa próxima a uma das paredes e ao balcão de bebidas, num ângulo formidável em relação ao piano escuro do palco rebaixado em que os artistas se apresentavam.

WIK suspirou, frustrado consigo mesmo e com a falta alheia.

— A paixão é uma coisa curiosa, não acham? Algo que vai surgindo como quem nada quer, mas que de supetão toma-nos pelo braço e larga-nos sob os lençóis, entre palavras e corpos emaranhados. — O artista falava com um sorriso nos lábios, os quais brincavam de encostar-se no microfone como que em meio a um flerte sussurrado à meia-luz. — Assim nos conta Tom e Marino em mais uma entre tantas canções de amor que preenchem nossa apaixonada vida noturna. Com vocês, "Sucedeu assim".

Os dedos do homem resvalaram pelas cordas do Luar, com a sedutora e conhecida delicadeza de suas mãos alongadas, e o primeiro acorde foi tocado. Sua voz rouca e grave não tardou a ressoar.

Assim

Começou assim

Uma coisa sem graça

Coisa boba que passa

Que ninguém percebeu, não...[1]

Porchay parou diante da fachada simples do estabelecimento que pintava seus dias com tons menos cinzentos. Seus pés pareciam parafusados ao chão de paralelepípedos. Reconhecia, já, a voz de Kimhan – aquele doce e desejável músico que lhe fervia da intimidade ao estômago, fazendo malabarismos com suas lembranças, com sua consciência moral e com suas entranhas, tudo isso sem tocá-lo indiscretamente uma vez sequer.

E como queria ser tocado... E como não poderia permitir-se ser tocado!

Subiu a calçada estreita vagarosamente, as solas carregando o peso do mundo, e passou a ouvir ainda mais nitidamente aquele timbre inconfundível, que se misturava aos habituais burburinhos noturnos de dentro, de fora e das agitadas proximidades do botequim. Endireitou os óculos em seu rosto, como se incrementasse seu disfarce. Sentia-se como uma criança desobediente, daquelas que são travessas pelas costas de quem as criou. Apesar de isso ser-lhe angustiante, havia um quê de excitação em burlar algo que tomava como sua lei.

[PT-BR] Fade-a bohemian love story.Onde histórias criam vida. Descubra agora