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Assim,

Começou assim

Uma coisa sem graça

Coisa boba que passa

Que ninguém percebeu, não


"Sucedeu assim"

(Antonio Carlos Jobim e Marino Pinto, 1957)


Rio de Janeiro, 1957.

O tardar da noite, demarcando o fim da vida regular, inaugurava o animar-se de outros viveres, que ganhavam corpo na antiga capital do país. Boates e botequins povoados por boêmios declarados (ou pelos que se escondiam), eruditos, jornalistas, artistas famosos (ou desconhecidos fazendo seus nomes), apaixonados, traídos e ébrios. Por um tipo de subjetividade que, no auge da Era de Ouro do rádio, era paradoxalmente dourada e enevoada pela fumaça dos cigarros e charutos consumidos nos lotados espaços fechados.

Com um par de óculos que nada mais era do que um adereço de seu disfarce, Porchay zanzava entre os pontos populares do cenário noturno. As letras e as melodias, quase sempre banhadas por um sabor agridoce, esgueiravam-se por becos e avenidas, confidenciando fictícios e reais cantos e contos de amor. Esgueiravam-se como aquele esguio e esquivo corpo, que silenciosa e sobriamente adentrava modestos e tranquilos estabelecimentos com caderno e caneta em mãos.

Chamar atenção não era de seu feitio.

Era, secretamente, um compositor. Apreciando boa música e boa bebida, o homem ensaiava versos a partir do que presenciava naquele ora intenso, ora ameno cotidiano oculto. Pois o ordinário não lhe bastava. O sonho era um refúgio para o tédio, poeticamente adornado por melancolia e paixão.

Durante o dia, era um pacato redator que trabalhava na coluna de notícias de um popular jornal impresso; durante a madrugada, um boêmio que, andando sem rumo, desejava apenas dar movimento a uma existência sem cor. Suas órbitas cansadas, assim, eram preenchidas por luzes e por ritmos que lhe eram particularmente encantadores, embora oblíquos.

Encaminhou-se para o lugar de todas as noitadas. Sentando-se numa pequena mesa mais ao canto — enquanto uma bela pianista, o negro e longo vestido a marcar-lhe a finíssina cintura, tocava melodiosamente uma versão de "Noites cariocas"[2] antes do início das atrações principais da incipiente noite —, deu uma primeira golada na bebida que habitualmente sorvia, apenas para manter sua garganta lubrificada: gin puro. Nem precisava prestar-se a realizar o pedido para um dos garçons, pois já era conhecido pelos trabalhadores da casa. Serviam-lhe uma dose de imediato.

Debruçava-se, então, em seus rascunhos. Dedicava, a todas e todos que ali se apresentavam, um atento par de ouvidos, mas seus olhos preferiam passear pelos curiosos eventos da vida noturna: contemplava casais apaixonados, magistrados conversando sobre negócios, solitárias mulheres procurando por um novo amor. Eventualmente, quando o local ficava embaciado pelo baile da fumaça do tabaco, sempre de mãos dadas com um familiar aroma de fumo, aquelas cenas pareciam-lhe ainda mais sublimes; quando não mais lhe interessavam, preferia olhar para seus papéis. Entretanto, era apenas em aparência que ele desprezava as tantas atrações que por ali passavam.

Soubera, naquele dia, que uma nova figura marcaria presença no não tão elevado palco relativamente próximo a si, compartilhando espaço com outros convidados mais e menos conhecidos. Perdido em pensamentos, fitou distraidamente os adornos daquele que era como um altar de culto aos deuses das madrugadas cariocas: três degraus de cor rubra, um carpete de mesmo tom e um piano negro e melancólico, como a noite e o vestido de quem o tocava. Ergueu os dedos indicador e médio, tomado por uma vontade repentina de fumar, e pediu uma carteira de cigarros.

[PT-BR] Fade-a bohemian love story.Onde histórias criam vida. Descubra agora