Prólogo

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"Todas as coisas fluem e se interligam; uma perturbação em um lugar é sentida no outro lado do mundo."

Fyodor Dostoyevsky

"Levem-me de volta, oh, deuses bêbados da carnificina, vocês sabem que eu sempre fui sua filha favorita."

Florence Welch

Diziam que quando alguém estava à beira da morte, a pessoa via sua vida inteira passar diante dos olhos. Desde as primeiras memórias abstratas da infância até o momento que levou seu corpo moribundo até ali. No entanto, contrariando a crença comum, ela não viu nada. E se alguém pedisse para ser franca, ela diria sem pestanejar que qualquer coisa era melhor do que lidar com a dor lancinante e vermelha, tão presente e sufocante.

O sangue escorria pela escadaria de pedra aos borbotões, enquanto a neve castigava seu corpo exposto como se fosse um animal abatido. E para seus algozes, ela sabia que valia menos do que um animal.

Tentou erguer o rosto ferido, olhando sobre o ombro; tinham acertado uma faca na altura do pulmão direito. Era questão de tempo até que ela fosse drenada. Apesar da fraqueza crescente, tentou rastejar degraus abaixo, com o vento frio açoitando os ouvidos. De longe era possível escutar os gritos de socorro ecoando da floresta que circundava o castelo, e um cheiro de fumaça vinha de pontos distintos.

Quando mais nova, ouvia os velhos da vila dizerem que "Deus se manifestava na hora mais escura". Mas onde estava ele naquele exato momento então? Morto como os demais deuses? Onde estava o Todo Poderoso enquanto sua família pedia por misericórdia e lutava até as últimas forças?

— Por... favor... — sussurrou. — Alguém... Qualquer... um...

Mesmo a grama coberta de gelo era mais aconchegante do que o sangue que banhava seu corpo, deixando um rastro por onde passava.

Foi então que ouviu passos suaves indo em sua direção. A visão já estava turva demais para distinguir o mundo ao seu redor, e tão perto da morte, nada mais importava. Porém o brilho e o calor não passaram despercebidos, acalentando seu corpo em colapso.

— Peça — uma voz soou suave. — Peça e será concedido.

A quase-morta não tinha mais forças para abrir os olhos. Uma das mãos tentou agarrar um punhado de terra num último momento de raiva.

— Sangue — assoprou —, eu quero o sangue... deles...

A Caçada SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora