A Roda Da Fortuna

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   Lentamente os olhos de Gustavo tentavam enxergar através da escassa claridade do ambiente, a cabeça doía como se uma bolinha de gude estivesse quicando sem parar de lado para o outro dentro do cérebro, as mãos estavam amarradas a uma cadeira, a corda era de um tipo barato e áspero que arranhava a pele, não demora a perceber que os pés se encontravam do mesmo jeito, tem algo dentro da boca lutando para ocupar o espaço da língua, fita ao redor dos lábios finos, puxando a pele como cerra. Seu coração palpita, tremendo por inteiro, ele sabe o que aconteceu, mas o medo é da incerteza do que está por vir, tenta se soltar em vão, os dedos estão procurando nós para desatar, não há nenhum que possam alcançar. Desesperado, busca por outra solução, olha a sua volta, está escuro, tão escuro que o pânico por ter sido cegado o atinge em cheio, respira, respira, respira. Sua mente em parafuso, se debate em uma crise de pânico, até a cadeira cair de costas, forçando sua mente a racionalizar novamente quando sua mão é esmagada pelo encosto da cadeira, o pano abafa o som dos gritos, que lutam para escapar de seus lábios.

   — Olha só quem acordou. — A voz é grave, homogênea, como a de um locutor de rádio, percorre seus ouvidos e ossos, abafada, desconhecida mas familiar.

   Finalmente luz, alaranjada como fogo, tênue demais para iluminar um cômodo, mas o bastante para perceber que está em meio à imundície, as paredes de madeira tem camadas grossas de poeira. O chão tem muita terra e folhas secas de árvores, o madeiramento que o compunha desabou em alguns pontos, formando buracos, da posição em que está, é incapaz de ver o que tem abaixo deles, a luz também denuncia os desníveis e ripas tortas, o lugar parecia prestes a desabar, sacos de ráfia estavam por toda parte, o cômodo é apertado e parece se dividir em dois ou três, é uma casa velha e abandonada.

   O homem se aproxima, continua usando a máscara de coelho, tecida com um pano felpudo branco e encardido, a única coisa visível são seus olhos castanhos claros, vidrados, frios, esticados como um sorriso, está se divertindo, o olhando de cima, levanta a cadeira, pondo Gustavo sentado novamente. Chega mais perto, abaixa, olho no olho. Testas coladas, A vítima tenta virar o rosto, enjoado, é impedido pelas mãos do raptor que envolvem sua face o forçando a vê-lo. Vou te pendurar.

   — Sabe Gustavo — Ele estremece — quando eu era pequeno nunca esquecia nenhuma janela aberta, sabe? Assim nenhum homem malvado poderia entrar na minha casa, a não ser é claro que ele a quebrasse. — Sente o hálito ácido de quem acabou de comer algo doce. Ele teria cuspido no rosto do homem mascarado se pudesse.

   Enquanto uma mão acaricia sua bochecha, a outra sutilmente encontra os cabelos alaranjados fazendo um cafuné, é sujo, Gustavo entende que há uma intenção ali, ele sente, ele sabe, já passou por isso antes. Tenta se esquivar chacoalhando a cabeça, tão logo o carinho se torna um puxão, impulsionando sua cabeça para cima, solta um grito de protesto abafado. um soco lhe acerta o olho, a força o lança ainda mais para trás, acertando a nuca no encosto da cadeira, fica tonto por um segundo, o olho ferido se fecha instintivamente, incapaz de abri-lo.

   — Não seja um menino malvado. Fica bem quietinho, tá bom? — Gustavo tinha certeza que por baixo da máscara o psicopata continuava sorrindo, acuado, fez um sim com a cabeça seguido por um murmuro, embora não soubesse se era isso que o sequestrador queria que ele fizesse.

   O homem andou para trás da cadeira, possivelmente ao lugar de onde havia saído, fora do campo de visão da sua presa. Barulhos metálicos inundaram os ouvidos de Gustavo, embora não passassem de um sonido, eram ensurdecedores, fechos de zíper abrindo e fechando, uma mochila, talvez uma pasta. O rapaz amarrado em nenhum momento parou de tentar soltar as mãos, a corda estava manchada de sangue, fungando, tentava reprimir seus sentimentos em busca da razão, que sua mente fosse iluminada por uma ideia que o salvaria, nos filmes coisas assim pareciam simples. Um alto som se propaga, de móveis sendo arrastados, tomou o ambiente, agora uma mesa estava ao lado, um bisturi, os dedos de Gustavo começam a tremer, uma serrinha, o coração bate mais rápido, tesouras, a respiração se torna entrecortada, agulhas, soluços escapavam da garganta, furadeira, Gustavo chacoalha-se na cadeira tentando a força arrebentar as cordas, lágrimas escorriam sem parar a medida que mais materiais cirúrgicos saiam da mala, "eu vou morrer" debatendo-se, berrando, chutando, os pés estavam soltos? "Na queda, deve ter soltado". Imediatamente reprimiu os movimentos dos mesmos, uma brasa de esperança queimou o seu coração e em todo seu desespero a fez parecer muito mais do que era.

   — Menino mentiroso, você concordou que ficaria quietinho — a malícia no olhar de seu sicário, foi acentuada quando o dedo indicador foi posto à frente do focinho de coelho, a ansiedade fazia Gustavo hiperventilar — olhe só pra você, chora e grita como um neném. Vou ser bem gentil e ir bem devagar, assim vamos brincar bastante. Bambi, shiiiiii

   O homem mascarado aproxima-se com um uma tesoura, Gustavo cerra os punhos, a tesoura encosta na pele, sobre a clavícula.

   —Quietinho Bambi.

   Gustavo grita cada vez mais, a medida que a tesoura vai abrindo a pele expondo a carne fazendo o sangue escorrer da clavícula, o fio do bisturi passa no mesmo lugar repetidas vezes, a dor aumenta à medida que osso é exposto ao oxigênio, a camiseta branca está vermelha assim como o casaco. O psicopata encerra a amostra cravando violentamente o bisturi na mão de Gustavo, que tenta inutilmente se proteger tentando desviar a mão.

   Agulha e linha são encharcadas com água sanitária, Gustavo encara com horror, já não luta mais contra as cordas, aceitou que irá morrer, mas implora dentro de sua cabeça que seja rápido, que seja logo. Seu sequestrador se aproxima pronto para costurar sua arte, mas dessa vez o sicário tem outros planos, pega o martelo sobre a mesa e encara o medo nos olhos de sua presa, e acerta um golpe na lateral da cabeça, em um espasmo a vítima revira os olhos e os fecha. Indefeso e inconsciente Gustavo está alheio ao que seu agressor coleta lágrimas que escorreram de seu rosto junto ao sangue do ferimento delicadamente em uma tigela de porcelana branca como um dente de leite. Depositando-a no altar da sala onde estava esperando Gustavo acordar, sustentado em uma mesa, composto por velas de sete galhos e cristais negros, debaixo de outra carta, cujo a imagem lembra um roda de carroça cercada por animais, cujo um deles, se encontra amarrado.

                                                                                              *

    — Vou te levar a um lugar, fique bem calminho e te dou outra chance tá bom? — O homem mascarado apenas sussurrou, mas para Gustavo parecia gritos, ele se encolhe dentro das roupas sujas como se quisesse abafar o som..

   Encolhendo-se na cadeira o nó é solto pouco a pouco, à medida que os nervos recebem oxigênio a mão direita vai deixando a dormência assumir o ardor da pele lesionada pela corda.

   Um telefone apita sobre a mesa, mensagem, Gustavo reconhece o papel de parede, uma imagem da galáxia M83, é de Vitor. O rosto paralisado, os pensamentos em estática elaboram a trama, não tem muito tempo para agir, aproveita a brecha de distração do sequestrador, levanta em um salto erguendo a mão esquerda ainda presa a cadeira em direção ao carcereiro, ele só tem tempo de ver a madeira velha e semiapodrecida acertar sua cabeça, o barulho de estalo dos ossos causa-lhe ânsia, antes que o sequestrador possa levantar o garoto pisa sobre seu estômago em retribuição, mais uma vez, mais uma, mais uma, não esquecendo do chute na cabeça, desacordado, ou morto, pega um bisturi sem fio e corta os nós libertando a outra mão. Livre das amarras, apanhou o celular do namorado, correndo até uma das portas, trancada, olha para trás, o raptor continua deitado. Poderia tentar procurar a chave, mas não imaginaria que ela estaria em algum lugar fácil de encontrar, segue em direção a outra porta que leva a outro cômodo, há uma janela com a vidraça quebrada, os cacos longos se projetam da moldura como lâminas, trepadeiras esticam seu caule e folhas pela janela impedindo que veja o lado de fora completamente, mas consegue enxergar a silhueta de algumas árvores, tira seu casaco e coloca sobre o parapeito evitando o vidro.

   Quando o pé atinge o chão seu coração fica aliviado, mas o alívio se transforma em horror ao perceber que está em meio a floresta, as árvores altas tem uma copa rala e troncos largos, um indicativo de serem antigas, a cabana é ainda mais degradada do lado de fora, com cipós a cobrindo por toda parte, o telhado desabando pouco a pouco. Sem ideia de onde está, corre sem destino, arrancando a fita ao redor da boca, cospe um pedaço de tecido babado. 

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