Um desconforto me preencheu.
Eu já tinha feito uma entrevista na mesma semana em que realizei a matrícula. No mínimo, esse novo chamado, era estranho.
Meu cartão de passagem ainda estava em minhas mãos, como também uma caneta com uma cabeça de coelhinho rosa na ponta, comprada por mim há três anos, de um personagem da line friends que eu gostava. Eu estava toda enrolada segurando esses objetos e precisava guardá-los para continuar caminhando, mas quando fui fazer isso a alça da bolsa escorregou do meu ombro. Por reflexo, a segurei pela parte maior para evitar que caísse no chão molhado. E esse movimento, consequentemente, amassou o papel que eu segurava, fazendo também com que a caneta caísse.
Uma cena desastrosa.
— Vejo que você está em grandes apuros — disse um rapaz sorridente e gentil com óculos de armação grossa da cor preta. Me ajudou a segurar a bolsa após pegar e me entregar a caneta, complacente com o meu estado eufórico. — Mantenha a calma. Seu primeiro dia?
— Sim — um pouco envergonhada, não acrescentei qualquer outra coisa em minha fala. Não conseguia. Colocar a alça em meu ombro e tentar desamassar o papel foram as únicas ações realizadas enquanto o rapaz de fios castanhos me observava.
Sua risada anasalada atraiu meus olhos aos seus, dos quais mostraram-me estar se divertindo.
— Entendo perfeitamente como se sente. A três anos atrás eu estava em sua pele como calouro. Preocupado demais com tudo o que era novo, também em como deveria me sair bem — me lançou um olhar compreensível. — Isso é normal.
— Geralmente este não é o meu normal... — sussurrei absorta com esse fato, logo notando seus olhos à procura de explicação e recompondo-me. — É... E como fez para reprimir, nem que fosse um pouco, desse sentimento que nos faz suar e tremer as mãos? — eu estava nervosa para experienciar o novo, e era bem atípico do meu comportamento. Passei tanto tempo reclusa que devia ter afetado minhas habilidades sociais.
Ele pensou cuidadosamente, com o dedo indicador acima do nariz, de olhos fechados. Um pouco exagerado.
— No primeiro dia? Não consegui — balançou a cabeça em negação. — Cheguei atrasado aliás. Sorte minha que o docente foi empático comigo e não me deixou fora de sala. Acho que, quando bateu o olho em mim e viu o meu estado catastrófico, emergiu um sentimento de pena dentro dele. Mas também foi a única vez porque o semestre inteiro se revelou ser o próprio demônio — se remexeu todo com o corpo, como se quisesse se livrar de algo invisível que o atingiu.
— Ele soube ser compreensível naquela hora. Todo professor já foi aluno um dia, certo? — repuxei os lábios em uma linha reta, querendo saber se tudo o que eu estava sentindo atenuaria ao entrar na classe. — Ultrapassar a porta e se sentar lhe dão a sensação de que tudo está sob controle.
— Não exatamente... Quero dizer, talvez ofereça uma reação momentânea, mas isso não influenciou de eu não me acidentar após a terceira aula ao carregar tantas coisas nas mãos como você. Por isso, tome cuidado.
— O que aconteceu?
O rapaz de aparência nerd — como em filmes de adolescentes estadunidenses que eu jamais imaginaria encontrar — trajava uma camisa quadriculada preta e branca e calça chino azul marinho. Esbanjava um sorriso sem mostrar os dentes em seus lábios cheios e seus olhos manifestavam acolhimento.
— Caí escada abaixo e quebrei a clavícula direita. No momento nem senti dor, mas foi engraçado ver a cara assustada dos outros estudantes.
Pequeno acidente.
— Me parece que foi como um dia de sobrevivência para você — eu não sabia exatamente qual sensação meu corpo me pusera, mas era algo semelhante a estar assustada. Impressionada negativamente, acho.
— Consequência por estar inteiramente imerso em preocupações existentes apenas em minha cabeça — riu, mas eu não fiz o mesmo. Preferi admirar a sua imagem, ele me parecia como um personagem fictício, todo caracterizado. Seus dedos foram parar em uma grande mecha de cabelo sobre sua testa, penteando-a. Mirei sua reverência repentina. — Park Jimin.
— Chae Helena — meu leve sobressalto me fez imitar imediatamente seu movimento.
— Estrangeira? — uma arqueada na sobrancelha, um movimento bem rápido e sutil do homem.
— Sim. Brasileira. Sou de Daegu, mas cheguei recentemente à Seoul para os estudos. Há um dia e meio precisamente.
— Essa é a primeira vez que encontro uma pessoa estrangeira com um sotaque tão diferenciado. Isso não é muito comum, sabe.
— Bom… Você não é a primeira pessoa que acha estranho — minha risada soou obrigatória para descontrair o meu sentimento de chateação.
— Estranho não é exatamente a palavra para descrever, está mais para... interessante — o olhei, surpresa com a normalidade de como soou o adjetivo. Pensando bem, em nenhum momento o rapaz esboçou expressões que me constrangeram ou que me fizeram pensar em não pertencer a este país, do qual minha mãe e eu decidimos reconstruir as nossas vidas. Uma reação nova. — Mas voltando às nossas apresentações: prazer em conhecê-la. Eu sou apenas um simples estudante de dança que vivia em Busan — em um movimento teatral, rodopiou e me indicou o caminho com os braços. — e, nas horas vagas, salvador de donzelas em perigo.
Tão agradável que era impossível não sorrir.
— E onde está o seu traje, senhor herói?
— Isto que os seus olhos estão vendo agora — apontou seus polegares para si mesmo e piscou uma pálpebra em minha direção. Eu não entendi sua resposta.
Entramos no prédio chamado por B1, segundo Park, espaço para as artes em geral, como os cursos de música, dança, artes plásticas, moda e, minha graduação, artes cênicas. Não era muito grande, eu não me perderia caminhando por aqui, afinal. Subimos algumas escadas e andamos em corredores com poucos alunos. Ainda estava bem cedo.
Os ditos corredores largos tinham janelas brancas do chão ao teto, deixando a paisagem mais ampla para ser contemplada. Era possível enxergar uma pista de corrida sem estudantes ao longe e algumas árvores esverdeadas em pleno verão, chacoalhando suas folhas ao vento. Isso me parecia mais outra mudança de tempo, recordando-me que trouxera o meu guarda-chuva para caso eu necessitasse, seja para me proteger da chuva ou dos raios solares. Sim, eu milagrosamente havia o trazido de Daegu e estava dentro de minha bolsa.
Durante a nossa caminhada, Park me indicou alguns lugares que poderiam ser úteis para mim, como a biblioteca. Disse que era o paraíso de quem gostava de ler justamente pela quantidade do acervo e tamanho do local — suas palavras me fizeram curiosa em visitar o lugar o mais breve possível. Me apontou através de uma das janelas onde os atletas praticavam, supondo que eu estivesse interessada nesse tipo de informação.
E era verdade, estava sim.
Me sentia tranquila conversando com Park Jimin. Sua voz não era muito grave, o tipo que não encontrávamos normalmente em homens. Peculiar, poderia assim dizer. Suavemente entrava em meus ouvidos e uma sensação boa tomava conta da minha cabeça. Além do que ele era todo suave. O rosto de traços delicados parecia mais o de uma boneca por trás dos óculos brutos e, em uma das minhas encaradas, precisei apertar as pálpebras para ter a visão de seus pelos faciais — que não encontrei muitos, vale dizer. Eu tinha mais bigode que ele.
Obviamente, essas observações ficariam no mais profundo baú da minha mente.
Ele contava suas aventuras durante seus três anos na universidade, o que puxou meus pensamentos sobre quão cabeluda eu era comparado a ele para as suas histórias universitárias, que pareciam não acabar como um livro de páginas infinitas. Eu segurava as gargalhadas para não chamar atenção dos outros.
— E você acha que parou por aí? Claro que não! Muitos acontecimentos constrangedores fizeram parte do roteiro da minha vida — umedeceu os lábios para contar mais um capítulo de suas histórias com uma empolgação fervorosa. — Foi em Julho? 22 de Julho do ano retrasado! Estava quente, tinham liberado algumas fontes de água pela cidade para as pessoas se refrescarem. Meu destino foi um pequeno restaurante inaugurado há poucos dias, bastante comentado pelas pessoas da universidade. Comentários bons sobre a comida de lá. E, tipo, eu fiquei curioso para conhecer também — falou como se todo mundo tivesse feito o mesmo devido a curiosidade pelos comentários.
Mastigava um chiclete de sabor que eu não conseguira ver pela rapidez com que o doce fora jogado a boca.
— O melhor horário que eu decidi ir foi depois das aulas, no intervalo do almoço. Mataria dois coelhos com uma cajadada só. E eu fui. Comi muito, tudo estava tão delicioso que se tornou um lugar que até hoje frequento. Se você quiser, depois posso te passar o endereço.
— Tudo bem — me parecia uma boa ideia. Eu não conhecia muitos locais em Seoul.
— Mas enfim... — Park Jimin olhava todas as pessoas que passavam por nós, dando a entender que buscava por alguém. — Como havia dito anteriormente, aquele dia estava muito calor e, para me refrescar, fui a uma das fontes no caminho de volta para molhar o rosto. Só que eu tinha pressa em regressar às aulas, então nem reparei no meu estado. Quando dei por mim, todos me olhavam. Alguns rindo, outros surpresos. Sabe o por quê?
— Eu não faço a mínima ideia.
Nem imaginava.
— Uma mancha molhada entre as minhas pernas. Tão ridiculamente grande que foi impossível escondê-la.
— Sério? — ele arregalou um pouco os olhos e assentiu, boa parte do seu pequeno nariz escondida pela armação dos óculos.
Fiquei boquiaberta. Não sabia se a sua intenção era me fazer rir, porque eu sentia mais pena que qualquer outro sentimento.
— E atualmente? O destino ainda te prega acontecimentos constrangedores?
— Com certeza, mas eu o driblo antes que venha com alguma surpresa — seus olhos encontraram algo no meio de algumas pessoas. Quis ir até lá, porém não antes de se despedir de mim: — E é desse jeito que devemos viver, não se preocupando com coisas pequenas. Sabe, Chae, se você se importar muito com o que as pessoas vão pensar de você, estará vivendo em função delas e não da sua vontade. Passou vergonha? Leve na esportiva! Ria junto, não fique acuada. Também faça o que quiser sem se importar com julgamentos, porque com qualquer resquício de medo podem se aproveitar do seu momento de fraqueza e tirar vantagem dos seus sentimentos para seus próprios interesses.
Isso foi muito específico. Quase perguntei a ele se estava tudo bem, mas seu sorriso foi a resposta que eu precisava. Jimin estava sendo apenas crítico e continuava animado.
Ele assemelhava-se um pouco comigo nesse sentido de não ligar para o que as pessoas pensavam. Porém, Jimin tinha uma aura carismática infalível para fazer todos esquecerem de suas ações. Já eu, não era muito de “entrar na brincadeira" quanto ao assunto ser alvo de chacota. Eu tinha preferência pelo afastamento.
— Nos vemos no refeitório? Vai saber encontrá-lo sozinha? — duas últimas perguntas antes de ir para onde quer que fosse.
Eu disse que sim, que apenas procuraria. Não achava que seria um local difícil de encontrar.
Deu um leve toque em meu ombro e retornou de onde viemos, no sentido contrário. Alguns alunos puseram seus olhos em Park por um instante e cochicharam no corredor que era o exato da minha primeira aula.
Quando entrei em sala, não hesitei em me sentar na última fileira de cadeiras, mais distante da porta. Não era o local que eu mais gostava, contudo ficaria somente no primeiro dia para observar as pessoas que estariam comigo até o término da matéria. E ninguém tinha me notado, estavam muito bem focados no que faziam: jogando jogos nos celulares, lendo livros e revistas, batucando na mesa totalmente entediados, entre outras ações mínimas que não precisavam de muita descrição. Também inventei de fazer algo, nada de interessante pois nem ouvir música eu podia por causa do meu celular quebrado.
O tempo demorou a passar, mas faltando, aproximadamente, cinco minutos, todos tomaram uma postura menos relaxada.
Surgindo de repente pela porta, a docente caminhou até sua mesa ressaltando o barulho dos seus saltos vermelhos, os quais combinavam com o vestido negro longo sem qualquer adorno, para indicar sua presença. Os estudantes calaram-se, com os olhos focados na senhora mais velha bem elegante ajeitando três livros sobre a mobília.
— Bom dia, eu sou Park Min Hyuk e estarei lecionando Expressão Corporal e Figuração neste semestre. Alguém se arrisca a me dizer alguns pontos importantes sobre esses dois temas? — após dois segundos, apontou a caneta azul grossa para um aluno que levantou o braço disposto a lhe dar uma resposta.
— A expressão corporal, para mim, é a mais importante. Através dela, o ator repassa a tristeza, a fúria, o sofrimento do personagem interpretado para o público. Consegue envolver o espectador — a senhora balançou a cabeça sutilmente, pensativa.
— Mais alguém quer acrescentar algo? — como ninguém se pronunciou, recomeçou: — Você está certo até certo ponto. É o conjunto de fatores que a torna importante. Algum de vocês já leu uma história sem descrição do ambiente, das características do personagem, por exemplo? No teatro, além da encenação, a ambientação e a figuração também são pontos principais para trazer vida ao contexto. Até porque através delas saberemos o local onde tudo se passa, dar ênfase, seja dramática ou não, ou até mesmo deixar explícito a personalidade do personagem. Tudo deve se encaixar com coerência — impetuosa, se encostou de costas na mesa com um sorriso divertido. — Sem mais coisas para acrescentar? Ótimo, então vamos ao que importa. Eu quero um trabalho interessante de vocês para apresentarem no final do semestre, valendo dois terços da nota. Pode dar um pouco de trabalho, mas quem disse que a vida é fácil? Aqueles que gostam de criar cenários e figurinos irão adorar.
— Dois terços logo na primeira matéria, que bacana. Eu quero morrer — ouvi uma estudante na minha frente dizer baixo para si mesma, grunhindo em sofrimento.
— Você é novata? Olha, a senhora Park pode ser muito exigente, mas ela é perfeita para orientar alunos que queiram seguir a carreira da atuação e polir suas habilidades. Ouvi falar que a carreira da atriz Sohyon foi alavancada graças aos seus conselhos — a mulher ao seu lado esquerdo, que também ouvira o que disse, utilizou o mesmo tom de voz para respondê-la.
— Não brinca!
— É verdade! Ela é rude e antipática às vezes, mas nada se compara ao seu trabalho altamente reconhecido pela Academia de Artes Cênicas. Vai por mim, é melhor se agarrar o quanto pode enquanto ela ainda está lecionando. Seu processo para se aposentar está em andamento.
As duas engataram uma conversa facilmente como se fossem conhecidas há anos, até levarem uma chamada de atenção da docente de olhos e ouvidos afiados para detectar ruídos minimamente soados pela sala de aula. Isso as deixou apavoradas, obviamente, não querendo ser vistas como estudantes que mais fofocavam do que estudavam. Ficaram quietas em seguida.
Apoiei o queixo na mão, ouvindo a ponta da caneca piloto resvalar contra o quadro branco, no qual Park Min Hyuk elencava sobre as características cruciais para desenvolver uma atuação de excelência.
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Um Delinquente em minha Vida
RomanceApós ser vítima de acusação de um crime há dois anos, Chae Helena acreditava que sua mudança para a capital Seoul fosse seu primeiro passo para uma nova fase da sua vida, de preferência longe de indivíduos destrutivos e sentimentos românticos. Apesa...