Capítulo 21

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Querido diário,

a missão que enfrentei, dessa vez, superou a esfera do diálogo: a treta rolou solta.

Desde o princípio, sabia que uma intervenção angelical seria demandada como meio para se chegar ao fim de cumprir meu propósito com Ankh. As forças demoníacas são, simplesmente, uma das maiores providas pelo paranormal.

Como de costume, basta o pôr do sol para o raiar de Ankh. Ao menos isso que se espera.

O demônio não é tolo.

Até me questionei se, na lida com Lara, ele não seria uma pedra em meu sapato, mas não foi.

Refletindo agora, faz sentido: há uma certa onisciência nessas entidades, então Ankh já estava inteirado de meu upgrade e se manteve afastado para ganhar tempo de planejamento.

Tudo era uma questão de tempo e ele sabia.

No escuro de meu quarto, mantive-me a sua espera.

Esperei.

Talvez eu esteja previsível demais.

Entediada a essa altura, caminhei à porta e saí ao corredor em busca de algo para tomar.

Ao abri-la e me por um passo adiante, sob meus pés não pude sentir o chão.

Bruscamente, não havia chão, parede ou teto: Ankh havia me engolfado em sua névoa como um nefasto macrófago.

O submundo, ah, ele existe.

O cenário se redefiniu e me vi iluminada pelo vermelho sangue de atrocidades demoníacas. Eu havia sido forçada a atravessar os portões infernais de Ankh.

Exibido.

Logicamente, levei minha mão ao colar para ativar a runa Algiz.

No inferno, quando ativada, a runa Algiz promove um domo de luz ao meu redor, um escudo divino.

Impossível chamar mais atenção.

Em pouco tempo, o domo já se via transparente. Sua ainda presença, contudo, era confirmada pela sensação de proteção que se mantinha.

Era minha primeira vez nas profundezas do paranormal, sabe, então nem soube aonde ir ou o que fazer, sequer o que temer.

Algo ali chamou, em especial, minha atenção: um familiar pesar imensurável, de onde parecia não haver malignidade. A alma da moça do banheiro!

Nesse instante, aproximei-me da fonte do pesar e manipulei a runa Algiz para configurar proteção a nós ambas, sua alma estava segura comigo.

Sobre mim, muito acima, um redemoinho de vermelho sangue e obscuro se formou e contemplou a área de um bairro inteiro.

O cerne disso aí? Sim, Ankh.

Narcisista.

Evadindo do centro, o demônio, imenso, desceu ao chão, onde se personificou em minha frente, quase como um mundano ordinário.

- A-M-Y! Que agradável tê-la aqui em meu reino! - Proferiu com graça.

Afrontei-o pelo olhar.

- Não é como se eu tivesse tido escolha - respondi.

Ankh riu.

- Não fique assim, garotinha, preparei uma festa es-pe-ci-al-men-te para você! Não gostaria de se enturmar, hum? - Questionou, retoricamente.

Impressionante como soletra esse ente.

Às minhas costas, garras contiveram meus braços e me vi erguida ao alto, como uma pipa segurada por uma criança infame.

Abaixo de mim, um legítimo mar de monstros, repleto de vazios hediondos. Almas perdidas, negacionistas da luz, todos reservados ao inferno.

Enfurecida, minha luz interior ardeu em mim e extravasou por meus olhos, queimando tudo que entrava em contato.

Só que eu não visava aniquilar.

Minhas mãos estavam contidas, mas a contenção física limitava em nada minha capacidade de usufruir da luz. Eu era capaz de associá-la à Algiz.

O colar levitou sobre meu peito, meus olhos se voltaram para dentro de meu crânio e minha boca se abriu para soar um ensurdecedor grito benevolente.

Ao redor de mim, espalhou-se o domo da proteção, libertando as pobres almas corrompidas que se portavam em seu diâmetro.

Mamãe me ouviu.

Zangado pela liberdade que eu conferi a múltiplos de seus servos, Ankh se moldou demônio e avançou até mim, emitindo o urro da malevolência.

Agora quem riu fui eu, a besta estava abalada.

- Tá nervosinho, A-N-K-H?! - Diverti-me.

A entidade tentou me impor dano físico quando usou sua forma mutável para me lançar na direção de uma gruta, mas Algiz é implacável.

O maligno também ousou me isolar em escuridão, momento no qual fiz explodir minha luz e acabei ferindo o vil.

Minha mãe surgiu espantando, com o bater de suas asas, os malévolos coadjuvantes que atentavam contra mim.

Numa sintonia de mãe e filha, nossa benevolência cercou Ankh e isolou sua maldade mesmo do entorno infernal.

Executada uma contenção angelical, era a hora de converter o mal no bem.

Possibilitada por mamãe, a contenção garantia que eu pudesse acessar o âmago do hediondo: o ultrajado coração de Ankh.

De posse do que já foi órgão pulsante, em si injetei minha luz de esperança, validadora de meu propósito.

Para um negacionista da luz, a conversão do mal no bem se conquista pela imposição. Afinal, a negação impede a mente de exercer, com plenitude, as faculdades mentais. A negação fortifica o mal como imutável mal.

Agora isso já não me incomoda.

O infernal se desfez e me encontrei em meu lar.

Ankh foi transformado no bem que havia em si, então o que vimos antes de ascender ao céu se exibiu como um bebê recém chegado, tocado por minha bênção e cheio de vida própria.

Claro, assim como nada se cria e nada se perde, Ankh não nasceu malévolo.

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