três

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Aurora
Complexo do Alemão|9:00am
Sexta-feira

Ser sacerdotisa e filha de pais de santos foi uma das maiores dificuldades da minha vida no começo. Não tinha o dom, ou talvez, não tinha a sabedoria pra conseguir enfrentar todos a minha volta, mas hoje tenho. Hoje conheço a minha energia dentro do terreiro ou dentro de um jogo de búzios, sei como ser.

Passo a mão uma na outra, ouvindo o falatório no terreiro, o toque está durando em média duas horas, aqui é onde minha energia exala a cada canto, onde minha mente entra pesada e sai leve. O calor inala por baixo do meu traje de ìyáwò feminino, um camisu branco destaca no meu corpo, sem muitas coisinhas, era branco, com pequenos detalhes. Mais um toque foi encerrado, é como se todos meus músculos relaxa diante de todos.

Sou forte, tudo que aconteceu na vida nos últimos anos me trouxe sempre pra esse local, da onde nunca deveria ter pensado em sair. Pelo menos aqui não preciso chorar de frustração ou medo, aqui é onde escondi todas minhas dores e coloquei um sorriso nesse meu rosto, aqui é onde busco minha única paz, meu objetivo em ter uma dádiva com os orixas.
Aqui não precisa ter medo, aqui você mostra seu verdadeiro lado na candomblé, sente sua energia exalando.

A Aurora do começo jamais pensaria dessa forma, no começo houve brigas e desavenças entre eu e meus pais, eu não me enxergava aqui, não sabendo de todas coisas que eles passaram, os preconceitos de vizinhos ou quantas vezes fizeram piadas comigo em escolas, fui trocada de várias escolas na época da minha infância por saber apenas abaixar a cabeça e ouvir frases preconceituosas. Não somos vistos como ser humano, somos vistos como a palavra “macumbeiros.”
Na realidade temos sentimentos, expressarmos e também sentimentos dores.

Hoje foi dia de um toque em homenagem aos orixas, com sacrifício a animais. O sangue do animal é ofertado ao orixá, enquanto sua carne é preparada para ser servida aos fiéis. Depois, faz-se uma oferenda a Exu, orixá que tem o poder de abrir os caminhos. Durante a festa, os orixás são homenageados com cantos e danças, sempre ao som dos atabaques.

Meu corpo soa, dança e pela nossa expressão em danças e cantos. Havíamos passado pela possessão na mãe de santo e sobre pai de santo., estávamos no final. Quando houve a despedida de todos envolvidos, outros ficaram em ajuda, outros partiram.

Augusto: Ajeita o cabelo direito, Aurora — escuto a voz do meu pai ao passar do meu lado, seu olhar sério vem na minha direção. Balanço a cabeça, levando a mão no meu cabelo, passo pelo meus fios cacheados e macios, mas ajeito o coque, segurando o fios.

Sou filha de pais de santos, estou tentando ir pelo caminho da minha mãe, aos poucos, mas tentando, no começo eu não queria seguir esse caminho, mas hoje sigo.
Me vejo em tudo, me sinto bem e sinto como se fosse minha casa.

Júlio: Seu pai sempre mandando tú arrumar esse coque — Para do meu lado, olho sua roupa bem vestida no seu corpo e como destaca no seu corpo masculino.

Júlio é um amigo há um ano desde quando começou a frequentar o terreiro ao meu lado, ele é igual a minha personalidade, determinado naquilo que gosta e sempre está aqui participando.

— E ele vai dizer sempre — dou um sorriso de canto, ajeitando minha roupa.

Júlio: Vamos ajudar eles, depois conversamos como sempre — balanço a cabeça em positivo.

Alguns minutos passam, depois de trocar minha roupa e estar ao lado em uma certa distância, caminho ao seu lado. Passo minha mão no cabelo, prendendo meus fios mais fortes, iria chegar em casa primeiro como sempre e aguardar meus pais.

Júlio: o dia de hoje tá fechando.

— Como tua mãe tá?

Júlio: Ela tá bem, Aurora, só tá afastada por umas coisas em relação ao meu pai, mas logo tá de volta.

— Axé — dou um sorriso fraco — Jamais abandonar os orixás.

Júlio: Ela jamais faria isso.

Depois de despedir dele, adentro minha casa, deixo a porta fechada, tirando meu sapato, troco por uma sandália, respirando fundo.
Meu próximos passos são pro banheiro, tiro toda minha roupa, levando minha mão no chuveiro e ligo, ouvindo o barulho da água cair sobre o chão, desamarro meu coque, entrando por baixo da água gelada, que cai sobre o meu corpo quente e suado, água escorrer por cada canto, relaxando meus músculos, deslizo meus dedos sobre meu couro cabeludo.

Lavo todo meu corpo, ensaboando e em seguida lavo meu cabelo, pego minha toalha, enxugando meu corpo, coloco em seguida no meu cabelo, pra finalizar, de frente ao espelho dentro do banheiro bato meu olhar em um cicatriz perto do meu ombro, mesmo sendo baixa, a altura do espelho favorece. Engulo minha própria saliva, levando meu dedo sobre a cicatriz pequena.

Uma cicatriz simples, mas por dentro mostra dor, traumas e medo. Deslizo meu dedo sobre a cicatriz, lembrando por poucos segundos.
Eu estava com ele...

Roseli: Aurora, tá em casa? — saio do meu transe, ouvindo a porta da sala ser aberta.

— Tô, mãe, tô no banheiro — pego minha roupa, subo minha calcinha preta, em seguida visto um vestido longo na cor Nude, que combina perfeitamente. Calço minha sandália pequena, dentro do banheiro começo a finalizar meu cabelão cacheado e vou secar no secador com difusor, os cachos enormes caem sobre meu corpo, passo meu hidratante na minha pele.

Roseli: Vai ir pegar os livros, que comprou? — ouço a sua voz quando saio no corredor.

— Sim, aliás, tô atrasada, daqui a pouco tenho um cliente — jogo meu cabelo todo de lado, espalhando o cheiro.

Faço jogo de búzios, conhecimentos e intuição transmitida pelos orixás e Ancestrais. Consegui minha formação através de certos ritual ao longo da minha formação nas comunidades tradicionais de terceiros ao me tornar sacerdotisa.

Augusto: Toma cuidado, Aurora, já avisamos várias vezes sobre esses rapazes em cada lugar — balanço a cabeça.

— Tá, pai, tudo bem.

Augusto: Cuidado, tudo pode ocorrer certo se tú andar em linha com seus pais, já aconselhamos várias vezes — levanto meu olhar em sua direção, fito seu rosto — ontem naquele bar onde fomos, todos seus tios deram conselhos.

— Pai, eu não tô indo encontrar com homem, eu tô indo pegar uns livros e depois trabalhar, como sempre fiz — falo séria — Fica tranquilo — dou um sorriso, ouço a sua voz novamente.

Augusto: Da última vez descobrimos o que tanto escondia do seus pais — meu sorriso murcha em meus lábios, levo minha mão na maçaneta da porta, apertando devagar. Estava somente eu e ele na sala, viro meu rosto sobre meu ombro, olhando no seu rosto, suas íris séria demonstra remorso, sua pele negra e seu rosto sério continua me encarando.

— O senhor falou isso várias vezes, não precisa repetir — olho no seus olhos — Eu fui perdoada pelo senhor por ter mentido, pai — aperto a maçaneta entre meus dedos — Esse assunto tá morto e enterrado — as palavras saem entre meus lábios — Tenha um bom dia.

Depois de tanto tempo sem tocar no assunto, ele volta tocar novamente e percebo o quanto essa cicatriz ainda não está curada. Dói muito ainda, mesmo depois de anos, creio que demora pra cicatrizar e quando isso ocorrer, não quero nunca mais ter que lembrar de um amor proibido e doído, que machuca ainda.

Meu Erro- Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora