A sra. Leidner fez o seu relato numa sexta-feira.
Na manhã de sábado, havia uma tênue sensação de
anticlímax no ar.
A sra. Leidner, em especial, mostrou-se inclinada a me
tratar com frieza e, de modo intencional, evitou qualquer
possibilidade de tête-à-tête. Bem, aquilo não me surpreendia!
Não era a primeira nem seria a última vez a acontecer comigo.
Damas revelam coisas à enfermeira numa súbita manifestação de
confiança; pouco tempo depois, se sentem constrangidas e
lamentam ter desabafado! É a natureza humana, sem tirar nem
pôr.
Tive a maior cautela em não insinuar nada nem lembrá-la de
alguma maneira do que ela me contara. Mantive propositalmente
minha conversa a mais prosaica possível.
O sr. Coleman partira a Hassanieh pela manhã, embarcando
na caminhoneta com as cartas numa mochila. Ele também tinha
recebido algumas encomendas dos membros da expedição. Era
dia de pagamento para os funcionários, e ele precisava ir ao
banco e trazer o dinheiro em moedas de baixo valor. Tudo isso
demandava tempo e ele não esperava retornar até o meio da
tarde. Suspeitei inclusive de que ele fosse almoçar com Sheila
Reilly.
Em geral, o trabalho na escavação não era muito puxado nas
tardes de pagamento, e o expediente encerrava mais cedo, às três
e meia da tarde, quando os funcionários começavam a receber o
salário.O moleque (Abdullah) cuja função era lavar os potes,
instalado como de costume no meio do pátio, entoava a também
costumeira cantilena nasalada. O dr. Leidner e o sr. Emmott iam
aproveitar para fazer uns serviços cerâmicos até o retorno do sr.
Coleman, e o sr. Carey voltou ao montículo.
A sra. Leidner foi descansar no quarto dela. Eu a acomodei
como sempre e então me encaminhei ao meu quarto, levando um
livro, pois não tinha sono. Faltavam quinze minutos para a uma
da tarde, e duas horas prazerosas se passaram. Imergi na leitura
de Morte na casa geriátrica – mistério para lá de empolgante –,
mas acho que o autor não entendia muito sobre como administrar
uma casa geriátrica! Pelo menos nunca ouvi falar numa casa
como aquela! Fiquei com vontade de escrever ao autor e dar
umas dicas a ele.
Quando enfim terminei o livro (quem diria, era a
arrumadeira ruiva, de quem eu menos suspeitava!), consultei o
relógio e, para minha surpresa, descobri que faltavam vinte
minutos para as três!
Levantei-me, endireitei o uniforme e saí para o pátio.
Abdullah continuava a esfregar os potes e a entoar seu
canto melancólico, e David Emmott estava em pé ao lado dele,
selecionando o material já lavado e guardando os fragmentos dos
potes quebrados em caixas para esperar a colagem. Caminhei na
direção deles bem na hora em que o dr. Leidner desceu as escadas
vindo do terraço.
– Tarde proveitosa – comentou alegre. – Fiz uma boa
limpeza lá em cima. Louise vai ficar satisfeita. Ela andava se
queixando de que não havia mais espaço para passear no terraço.
Vou contar as boas novas a ela.
Dirigiu-se à porta da esposa, bateu e entrou.
Deve, suponho, ter saído cerca de um minuto e meio
depois. Casualmente eu olhava para a porta. Foi quase umpesadelo. Entrou animado e bem-disposto. Saiu trôpego como
um bêbado. Trazia uma estranha expressão atônita estampada no
rosto.
– Enfermeira... – chamou com uma voz estranha e rouca. –
Enfermeira...
Logo notei que havia algo errado e acorri até ele. Parecia um
farrapo humano – o rosto assustado tremia sem parar; percebi
que ele podia desmaiar a qualquer instante.
– Minha esposa... – disse ele. – Minha esposa... Ai, meu
Deus...
Passei por ele e entrei no quarto. Sustive a respiração.
Ao lado da cama, num horroroso amontoado, jazia a sra.
Leidner.
Curvei-me sobre ela. Morta, sem dúvida – e morta há uma
hora pelo menos. A causa da morte não podia ser mais óbvia:
uma terrível pancada na parte frontal da cabeça, pouco acima da
têmpora direita. Devia estar se levantando da cama quando foi
atingida e caiu.
Evitei tocá-la mais do que o necessário.
Corri o olhar pelo quarto para ver se havia alguma pista,
mas nada parecia estar fora do lugar, nem ter sido mexido. As
janelas permaneciam fechadas e trancadas, e não havia lugar onde
o assassino pudesse ter se escondido. Evidente que ele viera e
saíra há um bom tempo.
Saí e fechei a porta atrás de mim.
O dr. Leidner a esta altura já havia desmaiado. David
Emmott o amparava, volvendo um rosto lívido e indagador em
minha direção.
Em voz baixa e em poucas palavras contei a ele o que
acontecera.Como eu sempre havia suspeitado, ele demonstrou ser uma
pessoa de primeira categoria em quem se confiar em meio a uma
crise. Continuou plenamente calmo e dono de si. Aqueles olhos
azuis se arregalaram, mas afora isso não se alterou.
Meditou por um instante e disse:
– Imagino que devemos avisar a polícia o quanto antes. Bill
estará de volta a qualquer minuto. O que vamos fazer com o dr.
Leidner?
– Ajude-me a levá-lo ao quarto dele.
Assentiu com a cabeça.
– Melhor primeiro chavear esta porta – afirmou.
Passou a chave na porta do quarto da sra. Leidner, tirou-a
da fechadura e entregou-a para mim.
– Creio que é melhor guardar isto, enfermeira. Agora vamos
lá.
Juntos, erguemos o dr. Leidner, o carregamos ao interior do
quarto dele e o repousamos na cama. O sr. Emmott saiu em
busca de conhaque. Voltou acompanhado da srta. Johnson.
Não obstante o rosto preocupado e aflito, ela se manteve
calma e eficaz. Dei-me por satisfeita em deixar o dr. Leidner a
cargo dela.
Apressei-me rumo ao pátio. A caminhoneta cruzou embaixo
do arco naquele instante. Acho que todos nós ficamos chocados
ao ver Bill saltando do veículo de rosto corado e alegre com seu
conhecido bordão:
– Epa, opa, opa! Chegou a grana! – E prosseguiu animado:
– Nada de roubo na estrada...
De súbito estacou.
– Puxa, o que foi que aconteceu? Qual é o problema? Parece
que o gato comeu a língua de todo mundo.O sr. Emmott limitou-se a dizer:
– A sra. Leidner morreu... assassinada.
– O quê? – O rosto viçoso de Bill transfigurou-se
comicamente. Fitou o vazio com os olhos esbugalhados. – A
patroa Leidner... morta! Você não está falando sério!
– Morta? – Foi um grito agudo. Dei meia-volta e topei com
a sra. Mercado atrás de mim. – Disse que a sra. Leidner foi
assassinada?
– Sim – confirmei. – Assassinada.
– Não! – ofegou ela. – Ah, não! Não acredito. Vai ver ela
cometeu suicídio.
– Suicidas não golpeiam a própria cabeça – retruquei com
acidez. – É homicídio sem sombra de dúvida, sra. Mercado.
Ela sentou de repente num caixote emborcado e disse:
– Ah, mas isso é horrível... horrível...
Horrível, certamente. Não precisava ela ficar nos dizendo!
Fiquei me perguntando se talvez não estivesse sentindo um
pouco de remorso pelos sentimentos cruéis que nutrira contra a
morta e por todas as coisas odiosas que havia dito.
Um tempo depois, ela indagou sem fôlego:
– O que vão fazer?
O sr. Emmott encarregou-se de responder com seu modo
tranquilo.
– Bill, é melhor voltar a Hassanieh o mais rápido que puder.
Não sei muito bem qual é o procedimento correto. Melhor avisar
o capitão Maitland. Ele é o chefe da polícia local, se não estou
enganado. Mas primeiro fale com o dr. Reilly. Ele vai saber
como agir.
O sr. Coleman balançou a cabeça de modo afirmativo. Todo
e qualquer ar brincalhão se esvaíra de seu ser. Só parecia jovem eassustado. Sem dizer nada, entrou no veículo e partiu.
O sr. Emmott murmurou em um tom vago:
– Acho que devemos fazer uma busca. – Subiu a voz e
chamou: – Ibrahim!
– Na’am.
O criado veio correndo. O sr. Emmott falou com ele em
árabe. Começaram um diálogo exaltado. O rapaz parecia negar
algo com veemência.
Por fim, o sr. Emmott pronunciou com voz perplexa:
– Ele garante que não entrou ninguém aqui na tarde de hoje.
Nenhum tipo de forasteiro. Calculo que o criminoso deve ter
entrado às escondidas pelo pátio sem ninguém perceber.
– Claro que sim – concordou a sra. Mercado. – Ele se
esgueirou furtivamente quando os rapazes não estavam olhando.
– Sim – concordou o sr. Emmott.
A leve incerteza em sua voz me fez lançar a ele um olhar
indagador.
Ele virou e fez uma pergunta a Abdullah, o pequeno lavador
de potes.
A resposta do menino foi enfática e demorada.
A testa do sr. Emmott franziu-se ainda mais.
– Não entendo – murmurou ele consigo. – Não entendo de
jeito nenhum.
Mas não me disse o que ele não entendia.
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Agatha Christie - Morte na Mesopotâmia
Misterio / SuspensoA enfermeira Amy Leatheran é contratada para se juntar a uma expedição arqueológica no Iraque. Mas sua função ali tem bem pouco a ver com ruínas e artefatos: ela deve vigiar de perto a bela Louise Leidner, que está cada vez mais apavorada com a idei...