– Bismillahi ar rahman ar rahim. Essa é a expressão usada
pelos árabes antes de empreender uma jornada. Eh bien, também
vamos iniciar uma jornada. Uma jornada ao passado. Uma
jornada aos estranhos meandros da alma humana.
Não creio que até aquele instante eu tivesse sentido algo do
que se convencionou chamar “glamour do Oriente”. Para ser
franca, o que me deixou admirada foi a bagunça em todas as
esferas. De repente, porém, aquela fala de monsieur Poirot fez
surgir uma espécie de visão bizarra perante meus olhos. Pensei
em palavras como Samarkand e Ispahan; em comerciantes
barbudos; em camelos se ajoelhando; em carregadores
cambaleantes com grandes fardos nas costas atados em volta da
testa; em mulheres de cabelo pintado de hena e de rostos
tatuados, ajoelhadas lavando roupa à beira do Tigre – escutei
seus estranhos cantos angustiosos e o longínquo gemido da roda
d’água.
Quase tudo, coisas que vira e ouvira sem dar importância.
Mas agora, de certa forma, pareciam diferentes – como o retalho
de uma colcha bolorenta que, perto da luz, de súbito revela as
cores ricas de um antigo bordado...
Então corri o olhar pela sala e senti a estranha verdade do
que monsieur Poirot dissera – começávamos a empreender uma
jornada. Começávamos ali juntos naquele instante, mas cada qual
pegaria um caminho distinto.
E olhei para todos como se, de certa forma, os estivesse
vendo pela primeira – e última vez. Sei que soa ridículo, mas foiisso que senti.
Nervoso, o sr. Mercado estorcia os dedos e – com seus
esquisitos olhos claros de pupilas dilatadas – encarava Poirot. A
sra. Mercado fitava o marido com um estranho cuidado vigilante
– uma tigresa prestes a atacar. O dr. Leidner parecia ter
encolhido de modo curioso. O último golpe fora a gota d’água
para deixá-lo todo curvo e amarfanhado. Quase podia se dizer
que ele nem estava na sala, mas sim num local distante só seu.
Com a boca entreaberta e os olhos saltados, o sr. Coleman não
parava de observar Poirot. Aparência quase idiota. O sr. Emmott
olhava as próprias botas; nem consegui ver direito o rosto dele.
Confuso e de beiço espichado, o sr. Reiter nunca se pareceu
tanto com um porquinho belo e limpo. A srta. Reilly mirava
fixamente pela janela. Não sei o que passava na cabeça dela e
nem o que ela sentia. Foi quando relanceei o olhar para o sr.
Carey. Não sei explicar o porquê, mas ver o rosto dele me deixou
transtornada; desviei o olhar. Lá estávamos, todos nós. E algo
me dizia: quando monsieur Poirot terminasse, não seríamos mais
os mesmos...
Sensação esquisita...
A voz de Poirot continuou plácida. Como um rio correndo
manso em seu leito... rumo ao oceano...
– Desde o comecinho pressenti que para entender este caso
não se deveria procurar por sinais ou pistas externas, mas por
pistas mais verdadeiras: as pistas do conflito de personalidades e
dos segredos do coração.
“E ressalvo que, embora tenha chegado ao que acredito ser a
verdadeira solução do caso, não disponho de provas materiais.
Eu sei que foi assim que aconteceu porque deve ter sido assim,
porque de nenhuma outra forma cada fato isolado se encaixa em
seu lugar específico e reconhecido.
“E esta, para meu crivo, é a solução mais satisfatóriapossível.”
Fez uma pausa e prosseguiu:
– Vou começar minha jornada no instante em que entrei no
caso... quando me apresentaram o fato consumado. Pois bem,
cada caso, na minha opinião, tem modelo e forma definidos. O
padrão do nosso, a meu ver, girava todo em volta da
personalidade da sra. Leidner. Até que soubesse com exatidão
que tipo de mulher a sra. Leidner era, eu não seria capaz de
saber por que ela foi assassinada nem quem a matou.
“Este, então, foi meu ponto de partida: a personalidade da
sra. Leidner.
“Também havia outro pormenor psicológico de interesse: o
singular clima de tensão que se alegava existir entre os membros
da expedição, confirmado por várias testemunhas distintas
(algumas não pertencentes ao grupo). Decidi que, embora
dificilmente fosse um ponto de partida, deveria levar em conta
esse detalhe ao longo de minhas investigações.
“A ideia consensual era de que esse ambiente decorria da
influência direta da sra. Leidner sobre os membros da expedição,
mas, por motivos que vou salientar mais tarde, isso não me
parecia plenamente aceitável.
“Para começo de conversa, como mencionei, concentrei-me
única e exclusivamente na personalidade da sra. Leidner. Lancei
mão de meios variados para avaliar essa personalidade. As
reações que ela provocava em uma série de pessoas, todas com
acentuadas diferenças de caráter e temperamento, bem como o
que eu conseguia compilar por meio de minha própria
observação, que, claro, tinha alcance limitado. Mas acabei
tomando conhecimento real de certos fatos.
“A sra. Leidner tinha gostos simples e até mesmo austeros.Nem de longe amava o luxo. Por outro lado, tecia um bordado de
sumo primor e requinte. Isso revelava alguém de gosto delicado e
artístico. Da observação dos livros no quarto dela, formei um
juízo adicional: tratava-se de uma mulher inteligente e, em última
análise, egocêntrica.
“Haviam me insinuado que a maior preocupação da sra.
Leidner era atrair o sexo oposto... que ela seria, de fato, lasciva.
Não vi fundamento nisso.
“No quarto dela notei os seguintes livros na prateleira:
Quem foram os gregos?, Introdução à teoria da relatividade,
Vida de Lady Hester Stanhope, De volta a Matusalém, Linda
Condon e O trem de Crewe.
“Ela se interessava, para começo de conversa, em cultura e
ciência modernas. Ou seja, cultivava um lado nitidamente
intelectual. Entre os romances, Linda Condon e, em menor grau,
O trem de Crewe, pareciam revelar que a sra. Leidner sentia
afinidade e interesse por mulheres independentes...
desimpedidas ou presas em armadilhas masculinas. Também
demonstrava óbvia curiosidade pela personalidade de Lady
Hester Stanhope. Linda Condon é um primoroso estudo da
adoração feminina pela própria beleza. O trem de Crewe é a
análise de uma pessoa individualista e arrebatada. De volta a
Matusalém revela simpatia por uma postura mais intelectual do
que emocional em relação à vida. Pressenti que começava a
entender a falecida.
“Na sequência, estudei as reações daqueles que formavam o
círculo imediato da sra. Leidner... e minha imagem da morta
tornava-se cada vez mais completa.
“Ficou claro, a partir dos relatos do dr. Reilly e de outros,
que a sra. Leidner era uma daquelas mulheres dotadas pela
natureza não apenas com a beleza, mas com o tipo de magia
catastrófica que às vezes acompanha a beleza e que pode,mesmo, existir independentemente dela. Em geral, essas
mulheres deixam um rastro de episódios violentos atrás de si.
Elas provocam desastres... às vezes para outras pessoas... às
vezes para si próprias.
“Convenci-me de que a sra. Leidner em essência idolatrava a
si mesma; seu maior deleite era a sensação de poder. Onde quer
que estivesse, ela precisava ser o centro do universo. E todos a
seu redor, homens ou mulheres, tinham que reconhecer seu
domínio. Com certas pessoas isso era fácil. A enfermeira
Leatheran, por exemplo, mulher de natureza generosa e
imaginação romântica, deixou-se capturar de modo instantâneo e
cultivou sem relutância uma admiração integral. Mas havia um
segundo caminho pelo qual a sra. Leidner exercitava seu domínio:
o caminho do medo. Onde a conquista se mostrava fácil demais,
ela se deliciava com o lado mais cruel de sua natureza... Gostaria
de reiterar com ênfase que não se trata do que alguém pode
chamar de crueldade consciente, mas sim de algo natural e
irrefletido. Algo como o comportamento do gato com o
camundongo. Quando a consciência entrava em ação, ela se
tornava, em essência, uma pessoa boa, capaz de tudo para ser
atenciosa e solícita.
“Claro, o primeiro e mais importante problema a solucionar
era o das cartas anônimas. Quem as escrevera e por quê?
Perguntei a mim mesmo: a autora das cartas seria a própria sra.
Leidner?
“Para resolver esse enigma, era necessário retroceder um
longo caminho... voltar, de fato, à data do primeiro casamento da
sra. Leidner. Aqui nossa jornada começa para valer. Na viagem à
vida da sra. Leidner.
“Antes de tudo, temos que perceber que a Louise Leidner
daquela época é basicamente a mesma Louise Leidner que vocês
conheceram.“Na flor da idade, dona de extraordinária beleza (o tipo de
beleza ao mesmo tempo triste e fascinante que perturba os
sentidos e a alma de um homem de um jeito que nenhuma beleza
apenas material consegue), mas, no fundo, já egocêntrica.
“É natural que a ideia de se casar provoque repulsa nessas
mulheres. Até sentem atração pelos homens, mas preferem
pertencer a si próprias. Encarnam mesmo La Belle sans Merci
do poema. Entretanto, a sra. Leidner realmente se casou... e
podemos supor, penso eu, que o marido dela deve ter sido um
homem de personalidade forte.
“Diante da revelação das atividades traiçoeiras do marido, a
sra. Leidner age como contou à enfermeira Leatheran. Passa as
informações ao governo.
“Ora, na minha apreciação, essa atitude carrega significado
psicológico. Ela contou à enfermeira Leatheran que era uma
jovem muito idealista e patriótica, e que esse sentimento havia
motivado a sua ação. Mas é fato bem conhecido que todos nós
temos a tendência a nos autoenganar quanto aos motivos de
nossas próprias ações. É instintivo: selecionamos o motivo mais
politicamente correto! A sra. Leidner pode ter se levado a crer
que o patriotismo inspirou sua atitude, mas na verdade acredito
ter sido o resultado do desejo inconfesso de se livrar do marido!
Não gostava de dominação... não gostava da sensação de
pertencer a alguém... de fato, não gostava de ter papel
coadjuvante. Aproveitou uma saída patriótica para recuperar a
liberdade.
“Mas, no subconsciente, incrustou-se uma corrosiva
sensação de culpa que desempenharia importante papel em seu
destino.
“O que nos conduz direto ao tema das cartas. A sra.Leidner exercia intensa atração sobre os homens. Por várias
vezes, sentiu-se atraída por eles – mas sempre uma carta
ameaçadora aparecia, e o romance não dava em nada.
“Quem escreveu aquelas cartas? Frederick Bosner, seu
irmão William ou a própria sra. Leidner?
“Há elementos que corroboram cada uma dessas teorias.
Parece-me claro que a sra. Leidner era uma dessas mulheres que
inspiram paixões arrebatadas nos homens, do tipo que podem
virar obsessão. Acho bem possível acreditar num Frederick
Bosner para quem Louise, sua mulher, importasse mais do que
qualquer outra coisa no mundo! Ela já o havia traído uma vez, e
ele não ousaria aproximar-se dela abertamente, mas uma coisa
pelo menos estava determinado a fazer: ela seria só dele e de
mais ninguém. Preferia vê-la morta do que nos braços de outro
homem.
“Por outro lado, se a sra. Leidner, no fundo, tivesse aversão
pelos laços do matrimônio, poderia ter escolhido esse modo de
se desvencilhar de posições delicadas. Era uma caçadora cuja
presa, depois de dominada, tornava-se descartável! Desejando
emoção na vida, ela inventou um drama altamente satisfatório:
um marido ressuscitado que proibia os proclamas de casamento!
Aquilo satisfazia seus instintos mais selvagens. Tornava-a uma
figura romântica, uma heroína trágica e evitava um novo
compromisso.
“Essa situação perdura durante anos. Sempre que há
qualquer possibilidade de casamento... chega uma carta
ameaçadora.
“Mas agora tocamos num ponto muito interessante. O dr.
Leidner entra em cena... e não chega nenhuma carta de proibição!
Nada a impede que se torne a sra. Leidner. Só depois do
casamento chega uma carta.
“Isso logo nos leva à pergunta: por quê?“Vamos analisar cada uma das teorias.
“Se a sra. Leidner fosse a autora das cartas, o problema
seria de fácil explicação. A sra. Leidner quer de verdade casar-se
com o dr. Leidner. E assim realmente casa-se com ele. Mas,
nesse caso, por que escreve uma carta para si mesma depois?
Sua ânsia por emoção é intensa demais para ser suprimida? E
por que só aquelas duas cartas? Depois delas mais nenhuma é
recebida até um ano e meio depois.
“Agora vejamos a outra teoria, a de que as cartas foram
escritas pelo primeiro marido, Frederick Bosner (ou seu irmão).
Por que a carta ameaçadora chega depois do casamento? É
presumível que Frederick não desejasse que ela se casasse com
Leidner. Por que, então, ele não impede o casamento? Ele
conseguiu fazê-lo com sucesso em ocasiões anteriores. E por
que, tendo esperado acontecer o casamento, ele retoma as
ameaças?
“A resposta, não muito satisfatória, é que por um motivo
ou outro ele não pôde se manifestar com antecedência. Talvez
estivesse preso ou no exterior.
“Outro fato a considerar é a tentativa de envenenamento
por gás. Parece extremamente implausível ter sido praticada por
alguém de fora. Os prováveis autores eram os próprios dr. e sra.
Leidner. Não parece haver motivo concebível para que o dr.
Leidner fizesse uma coisa dessas, então somos levados a concluir
que foi a sra. Leidner que planejou e executou a farsa.
“Por quê? Mais drama?
“Depois disso, o dr. e a sra. Leidner viajam ao exterior e por
um ano e meio desfrutam de uma vida feliz e pacata, sem ameaça
de morte para causar perturbação. Creditam isso à bem-sucedida
manobra de apagar vestígios de seu novo paradeiro, mas essa
explicação é descabida. Nos dias de hoje, viajar ao exterior é uma
coisa totalmente inadequada a esse propósito. E ainda mais nocaso dos Leidner. Ele era o diretor de uma expedição patrocinada
por um museu. Indagando no museu, Frederick Bosner obteria
de imediato seu endereço correto. Mesmo levando em conta a
existência de circunstâncias limitantes para que seguisse o rastro
do casal, não haveria empecilho para que ele continuasse a enviar
as cartas ameaçadoras. E me parece que um homem obcecado
sem dúvida teria feito isso.
“Em vez disso, ele não se manifesta durante quase dois
anos, quando as cartas voltam a aparecer.
“Por que as cartas voltaram a aparecer?
“Questão intricada... cuja resposta mais fácil seria: a sra.
Leidner estava aborrecida e queria mais drama. Mas a mim isso
não satisfazia. Essa forma particular de drama me parecia um
tanto vulgar e tosca para combinar bem com sua exigente
personalidade.
“A única coisa a fazer era manter a cabeça aberta em relação
a esse ponto.
“Existiam três possibilidades: (1) as cartas foram escritas
pela própria sra. Leidner; (2) as cartas foram escritas por
Frederick Bosner (ou pelo jovem William Bosner); ou (3) elas
podem ter sido escritas originalmente tanto pela sra. Leidner
quanto pelo primeiro marido, mas agora eram falsificações... ou
seja, de autoria de uma terceira pessoa que sabia das primeiras
cartas.
“Agora vou proceder à análise franca do séquito da sra.
Leidner.
“Primeiro examinei as oportunidades reais que cada membro
da expedição teve para cometer o assassinato.
“Grosso modo, pelo visto, qualquer um poderia tê-lo
cometido (no que tange à oportunidade), à exceção de três
pessoas.
“O dr. Leidner, de acordo com testemunhos irrefutáveis,nunca abandonou o terraço. O sr. Carey trabalhava no sítio
arqueológico. O sr. Coleman cumpria missões em Hassanieh.
“Mas esses álibis, meus amigos, não eram assim tão bons
quanto aparentavam. Abro exceção ao dr. Leidner. Não há sequer
sombra de dúvida: ele permaneceu no terraço todo o tempo e só
desceu uma hora e quinze minutos depois do crime ter
acontecido.
“Mas era absolutamente certo que o sr. Carey estava no
montículo o tempo todo?
“E o sr. Coleman estava mesmo em Hassanieh na hora em
que o crime aconteceu?”
Bill Coleman corou, abriu e fechou a boca, correndo o olhar
ao redor de modo inquieto.
A expressão do sr. Carey não mudou.
Poirot continuou em tom suave.
– Também me detive em outra pessoa que, na minha
avaliação, seria perfeitamente capaz de cometer assassinato se
ela se sentisse com força suficiente. A srta. Reilly tem coragem,
inteligência e um toque de crueldade. Quando ela conversava
comigo sobre a falecida, eu lhe disse, em tom de brincadeira, que
seria bom que ela tivesse um álibi. Acho que a srta. Reilly
naquele instante sabia que, pelo menos, havia sentido no coração
a vontade de matar. De qualquer forma, tratou logo de inventar
uma mentira boba e sem nexo. Disse que tinha ido jogar tênis
naquela tarde. No dia seguinte, fiquei sabendo numa conversa
casual com a srta. Johnson que, em vez de jogar tênis, a srta.
Reilly na verdade rondava a casa na hora do crime. Ocorreu-
me que a srta. Reilly, mesmo não sendo culpada do crime,
poderia ser capaz de me contar algo útil.
Parou e em seguida emendou com voz tranquila:
– Vai nos contar, srta. Reilly, o que viu naquela tarde?
A moça não respondeu logo. Permaneceu olhando pelajanela sem virar a cabeça. Ao tomar a palavra, o fez com a voz
desinteressada e comedida:
– Cavalguei até a escavação depois do almoço. Devo ter
chegado lá por volta de quinze para as duas.
– Encontrou algum de seus amigos na escavação?
– Não, parecia que ninguém comandava os trabalhos além
do encarregado árabe.
– Não viu o sr. Carey?
– Não.
– Curioso – disse Poirot. – Monsieur Verrier também não
viu quando foi lá naquela mesma tarde.
Mirou Carey sugestivamente, que não se moveu nem falou.
– Tem alguma explicação, sr. Carey?
– Fui dar uma caminhada. Não havia nada de interesse
acontecendo.
– Caminhou em que direção?
– À beira do rio.
– Não de volta para a casa?
– Não.
– Imagino – interpôs a srta. Reilly – que estivesse
esperando por alguém que não apareceu.
Ele a fitou, mas não emitiu resposta.
Poirot não insistiu nesse detalhe. Dirigiu-se à moça outra
vez:
– Viu algo mais, mademoiselle?
– Sim. Não muito longe da sede, me deparei com a
caminhoneta da expedição estacionada num uádi. Achei aquilo
muito estranho. Então avistei o sr. Coleman. Caminhava
cabisbaixo, como se procurasse algo.
– Olhe aqui – explodiu o sr. Coleman –, eu...
Poirot o interrompeu com um gesto de autoridade.
– Espere. Falou com ele, srta. Reilly?– Não. Não falei.
– Por quê?
A moça disse devagar:
– Porque, de vez em quando, ele erguia a cabeça e olhava ao
redor de modo incrivelmente furtivo. Aquilo me deu uma
sensação desagradável. Puxei as rédeas, fiz o cavalo virar a
cabeça e me afastei a trote. Acho que ele não me viu. Eu estava a
uma boa distância, e ele, absorto no que fazia.
– Olha só – seria impossível manter o sr. Coleman calado
por mais tempo –, tenho uma boa explicação para o que (admito)
parece um tanto suspeito. Na realidade, no dia anterior eu tinha
achado no montículo um bonito selo cilíndrico. Guardei no bolso
do casaco em vez de levar ao depósito de antiguidades... e me
esqueci completamente. Então descobri que tinha deixado o
cilindro cair do bolso... em algum lugar por aí. Não queria chamar
atenção para o caso, por isso decidi fazer uma procura minuciosa
às escondidas. Tinha certeza de que havia perdido no caminho
entre a sede e a escavação. Mandei um mestiço fazer parte das
compras e voltei mais cedo. Estacionei num lugar discreto e
fiquei procurando nas imediações durante mais de hora. Mesmo
assim não consegui achar o maldito cilindro! Daí subi na
caminhoneta e fui para a sede. Claro que todo mundo pensou
que eu recém havia chegado.
– E não fez nada para convencê-los do contrário? – indagou
docemente Poirot.
– Bem, isso foi bastante natural sob as circunstâncias, não
acha?
– Não posso dizer que concordo – murmurou Poirot.
– Ah, vamos lá... não procure problema: esse é meu lema!
Mas não pode me acusar de nada. Nunca entrei no pátio, e o
senhor não será capaz de encontrar alguém que tenha visto.
– Nisso, é claro, reside a dificuldade – admitiu Poirot. – Adeclaração dos funcionários de que ninguém entrou no pátio
vindo de fora. Mas me ocorreu, depois de refletir, que não foi
bem isso que eles disseram. Juraram que nenhum estranho havia
entrado na propriedade. Ninguém lhes perguntou se um membro
da expedição havia entrado.
– Bem, pode perguntar a eles – retorquiu Coleman. – Que
um raio caia em minha cabeça se me viram ou se flagraram Carey.
– Ah! Mas isso levanta um ponto bem interessante. Eles
notariam um intruso sem dúvida... mas será que notariam um
membro da expedição? Os membros da equipe estão a toda hora
num entra e sai. Os funcionários dificilmente reparariam suas
idas e vindas. É possível, penso eu, que tanto o sr. Carey quanto
o sr. Coleman pudessem ter entrado sem que o fato ficasse
registrado na memória dos funcionários.
– Bobagem! – exclamou o sr. Coleman.
Poirot prosseguiu tranquilo:
– Dos dois, acho que o sr. Carey era o menos provável de
ser notado entrando e saindo. O sr. Coleman partira rumo a
Hassanieh de carro naquela manhã e era esperado que retornasse
a bordo dele. Sua chegada a pé seria, portanto, detectável.
– Claro que seria! – disse Coleman.
Richard Carey ergueu a cabeça e fixou os olhos azul-escuros
em Poirot.
– Está me acusando de assassinato, sr. Poirot? – indagou.
Seu jeito era bastante calmo, mas a voz insinuava certa
ameaça.
Poirot fez uma reverência na direção dele.
– Por enquanto, só conduzo todos vocês a uma jornada...
minha jornada rumo à verdade. Até agora estabeleci um fato:
todos os membros da expedição, inclusive a enfermeira
Leatheran, poderiam ter cometido o crime. O fato de ser pouco
provável que alguns o tenham cometido é secundário.“Tendo examinado meios e oportunidade, passei então ao
motivo. Descobri que cada um de vocês poderia ter o seu
motivo!”
– Ah! Monsieur Poirot – gritei. – Eu não! Ora, eu era uma
forasteira que tinha acabado de chegar.
– Eh bien, ma soeur, e não era justo isso que a sra. Leidner
temia? Um forasteiro recém-chegado?
– Mas... mas... ora, o dr. Reilly sabia tudo sobre mim! Foi
ele quem sugeriu a minha vinda!
– O quanto ele sabia, na verdade? Em essência, o que a
senhorita mesma havia lhe contado. Não terá sido a primeira
nem a última vez que um impostor se fez passar por enfermeira.
– Escreva para o St. Christopher – desafiei.
– Por ora fique em silêncio. É impossível prosseguir
enquanto a senhorita conduz essa discussão. Não estou dizendo
que suspeito da senhorita agora. Tudo o que digo é que,
mantendo a cabeça aberta, qualquer um pode com facilidade ser
alguém diferente do que finge ser. Existem muitos casos bem-
sucedidos de homens que se travestiram de mulher, sabe. O
jovem William Bosner poderia ter tentado algo desse tipo.
Tive que me segurar para não lhe dizer poucas e boas.
Homem travestido de mulher, pois sim! Mas ele ergueu a voz e
continuou com tamanho ar de determinação que pensei duas
vezes.
– Agora vou ser franco... e cruel. É necessário. Vou
desnudar a estrutura secreta deste local.
“Perscrutei e estudei cada alma aqui presente. Para começar,
o dr. Leidner. Logo me convenci que o amor pela esposa era a
causa maior de sua vida. A perda o dilacerava e arrasava. A
enfermeira Leatheran já mencionei. Se fosse farsante, era
muitíssimo competente. Fiquei inclinado a acreditar que ela era
mesmo o que afirmava ser: uma enfermeira de plena eficácia.”– Obrigada por nada – atalhei.
– Minha atenção voltou-se de imediato ao casal Mercado,
claramente num estado de grande inquietude e agitação. Primeiro
avaliei a sra. Mercado. Seria capaz de matar e, caso positivo, por
que razões?
“O físico da sra. Mercado é frágil. À primeira vista, não
parecia concebível que pudesse ter forças para derrubar alguém
como a sra. Leidner com uma pesada ferramenta de pedra. Se,
entretanto, a sra. Leidner estivesse ajoelhada na hora do golpe, a
ideia se tornaria pelo menos fisicamente possível. Existem
maneiras pelas quais uma mulher pode induzir que outra se
ajoelhe. Ah! Não maneiras emocionais! Por exemplo, a mulher
pode dobrar a barra da saia e pedir que a outra a prenda com
alfinetes. Ela se ajoelharia no chão sem suspeitar de nada.
“Mas o motivo? A enfermeira Leatheran tinha me contado
sobre os olhares zangados que a sra. Mercado dirigia à sra.
Leidner. O sr. Mercado, é claro, capitulou ao feitiço da sra.
Leidner sem oferecer resistência. Mas eu não acreditava que a
solução residisse no mero ciúme. Tinha certeza de que, na
verdade, a sra. Leidner não se interessava nem um pouco pelo sr.
Mercado... e, sem dúvida, a sra. Mercado sabia disso. Ela
poderia estar temporariamente furiosa, mas para assassinato
teria que haver maior provocação. Mas a sra. Mercado é em
essência um tipo maternal veemente. Pelo jeito que olhava o
marido, dei-me conta de que não apenas o amava, mas que lutaria
por ele com unhas e dentes. E mais do que isso: que ela
considerava a possibilidade de fazê-lo. Andava sempre vigilante
e inquieta. A inquietude era por ele... não por si própria. E
quando estudei o sr. Mercado, sem muita dificuldade pude fazer
uma suposição sobre onde residia o problema. Providenciei um
modo de me assegurar da veracidade de minha suposição. O sr.
Mercado é um viciado em drogas... no estágio avançado, que nãotolera abstinência.
“Ora, acho que não preciso contar a todos que o consumo
de drogas durante períodos demorados resulta no embotamento
do senso moral.
“Sob a influência das drogas, a pessoa comete atos que nem
sonharia cometer poucos anos antes do vício. Em certos casos,
homicídios foram cometidos... e é difícil dizer se o autor do
crime era ou não completamente responsável pelos seus atos. A
lei varia um pouco nesse ponto conforme o país. A principal
característica de um criminoso viciado em drogas é a confiança
arrogante na própria esperteza.
“Achei possível haver algum incidente desonroso, talvez
criminoso, no passado do sr. Mercado, que sua esposa tivesse
de uma forma ou de outra conseguido abafar. No entanto, a
carreira dele andava na corda bamba. Se algo sobre esse incidente
viesse à tona, seria a ruína do sr. Mercado. Por isso, a esposa
dele ficava sempre à espreita. Mas tinha que medir forças com a
sra. Leidner, pessoa de inteligência aguçada e adoração por
poder. Ela poderia até induzir o pobre coitado a tê-la como
confidente. Teria sido bem adequado a seu peculiar
temperamento saborear um segredo que pudesse revelar a
qualquer minuto com efeitos desastrosos.
“Aqui, então, haveria um possível motivo para assassinato
da parte do casal Mercado. Para proteger o esposo, a sra.
Mercado, eu não tinha dúvida, seria capaz de qualquer coisa!
Tanto ela como o marido tiveram a oportunidade... durante
aqueles dez minutos em que o pátio ficou deserto.”
O sr. Mercado gritou:
– Não é verdade!
Poirot não prestou atenção.
– A seguir me detive na srta. Johnson. Ela seria capaz de
assassinato?“Avaliei que sim. Era uma pessoa de vontade e autodomínio
férreos. Essas pessoas constantemente reprimem os
sentimentos... e um belo dia a represa arrebenta! Mas, se a srta.
Johnson tivesse cometido o crime, só poderia ser por alguma
razão conectada ao dr. Leidner. Se de algum modo ela se
convencesse de que a sra. Leidner estragava a vida do marido,
então o ciúme intenso e despercebido lá no fundo, aproveitando
um motivo plausível, saltaria à tona, desenfreado.
“Sim, a srta. Johnson representava uma possibilidade
significativa.
“Restavam os três jovens.
“Primeiro, Carl Reiter. Se, por hipótese, um integrante da
expedição fosse William Bosner, Reiter seria de longe a pessoa
mais provável. Mas, se fosse William Bosner, com certeza era
um ator de primeira! Se ele fosse apenas ele mesmo, teria algum
motivo para assassinato?
“Analisando do ponto de vista da sra. Leidner, Carl Reiter
era uma vítima muito fácil e não permitia divertimento. Pronto a
se lançar ao chão e idolatrar de imediato. A sra. Leidner
desprezava adoração cega... e a postura de capacho quase
sempre faz aflorar a pior face das mulheres. A sra. Leidner
tratava Carl Reiter com crueldade realmente premeditada. Um
escárnio aqui... uma alfinetada ali. Ela tornou a vida dele um
inferno.”
Poirot calou-se de repente e dirigiu-se ao jovem de modo
pessoal e bastante íntimo.
– Mon ami, que isso lhe sirva de lição. Você é homem.
Comporte-se, pois, como homem! É contra a natureza masculina
rastejar. O sexo feminino e a natureza reagem quase da mesma
forma! Lembre-se: é melhor pegar o maior prato à mão e jogar na
cabeça da mulher do que se retorcer como verme sempre que ela
olha para vocêAbandonou o estilo intimista e retornou ao tom de preleção.
– Será que Carl Reiter havia sido aguilhoado a tal nível de
suplício a ponto de fazê-lo voltar-se contra a causadora? Seria
capaz de matá-la? O sofrimento provoca coisas esquisitas em
um homem. Não havia como ter certeza de que não era isso!
“A seguir, William Coleman. O comportamento dele,
conforme o relato da srta. Reilly, é sem dúvida suspeito. Se
fosse o criminoso, só podia ser porque sua extrovertida
personalidade esconde a identidade secreta de William Bosner.
Não creio que William Coleman, do jeito que aparenta ser, tenha
temperamento assassino. Seus deslizes podem se situar noutra
direção. Ah! Talvez a enfermeira Leatheran saiba de que se
trata?”
Como diabos ele fez isso? Tenho certeza de que não fiz a
expressão de quem pensava em algo.
– Não é nada, mesmo – hesitei. – Só que, a bem da verdade,
o sr. Coleman disse uma vez que daria um bom falsificador.
– Pormenor interessante – argumentou Poirot. – Portanto,
se tivesse topado com uma das antigas cartas ameaçadoras, ele
poderia tê-las copiado sem dificuldade.
– Opa lá! – exclamou o sr. Coleman. – Isso que eu chamo de
conspiração.
Poirot retomou a palavra.
– Quanto a ele ser ou não William Bosner, eis uma questão
difícil de verificar. Mas o sr. Coleman tem falado de um tutor
(não de um pai) e não há nada que descarte a ideia.
– Besteira – retorquiu o sr. Coleman. – Não consigo
entender por que todos levam a sério esse sujeito.
– Dos três jovens, falta analisarmos o sr. Emmott –
continuou Poirot. – Também um possível escudo para a
identidade de William Bosner. Sejam quais forem as razõespessoais que pudesse ter para a eliminação da sra. Leidner, logo
percebi que não teria como descobri-las a partir dele. Ele é capaz
de guardar sua opinião com uma classe extraordinária, e não
havia a mínima chance de provocá-lo ou de enganá-lo para que se
traísse em algum ponto. De toda a expedição, ele parecia ser o
melhor e mais imparcial juiz da personalidade da sra. Leidner.
Acho que sempre a conheceu exatamente por aquilo que ela era...
mas qual impressão a personalidade da sra. Leidner causou nele
fui incapaz de sondar. Imagino que a própria sra. Leidner tenha
se sentido provocada e irritada por sua atitude.
“Devo dizer que, de toda a expedição, quanto à
personalidade e à capacidade, o sr. Emmott me parecia o mais
apto a levar a cabo de modo satisfatório um crime inteligente e
bem-cronometrado.”
Pela primeira vez, o sr. Emmott parou de mirar as próprias
botas e levantou o olhar.
– Obrigado – murmurou.
Em sua voz transpareceu um leve toque de divertimento.
– As últimas duas pessoas da lista: Richard Carey e o padre
Lavigny.
“De acordo com o testemunho da enfermeira Leatheran e de
outros, o sr. Carey e a sra. Leidner não se davam bem. Os dois
esforçavam-se para manter a cortesia. Outra pessoa, a srta.
Reilly, propôs uma teoria bem distinta para explicar essa atitude
de polidez glacial.
“Logo me restaram pouquíssimas dúvidas sobre a exatidão
da hipótese da srta. Reilly. Tive a certeza absoluta lançando mão
do simples expediente de incitar o sr. Carey a uma conversa
despreocupada e irrefletida. Não tive dificuldades. Logo percebi
que um estado de alta tensão nervosa o dominava. De fato, ele
estava (e está) à beira de um total colapso nervoso. Quem sofrede uma dor quase insuportável raramente consegue impor
resistência.
“As defesas do sr. Carey vieram abaixo quase de imediato.
Ele me confessou, com uma sinceridade da qual nem por um
instante duvidei, que odiava a sra. Leidner.
“E sem dúvida falava a verdade. Ele realmente odiava a sra.
Leidner. Mas por que a odiava?
“Já falei de mulheres que possuem magia catastrófica. Mas
homens também têm essa magia. Existem homens que sem o
mínimo esforço atraem as mulheres. O que hoje se chama de sex
appeal! O sr. Carey tem essa qualidade em grau intenso. A
princípio, mostrou-se dedicado ao amigo e chefe e indiferente à
esposa dele. Essa situação não servia à sra. Leidner. Ela
precisava dominar... e enfiou na cabeça que ia subjugar Richard
Carey. Mas aqui, acredito, algo completamente imprevisto
aconteceu. Ela própria, talvez pela primeira vez na vida, caiu
vítima de uma paixão arrebatadora. Ela se apaixonou... se
apaixonou de verdade... por Richard Carey.
“E ele... não foi capaz de resistir a ela. Essa é a verdade
sobre o terrível estado de tensão nervosa que ele tem suportado.
É um homem dilacerado por duas paixões contrárias. Amava
Louise Leidner... sim, mas ele também a odiava. Odiava-a por
acabar sua lealdade para com o amigo. Não há maior ódio do que
o de um homem induzido a amar uma mulher contra a sua
vontade.
“Aqui vislumbrei motivo mais que suficiente. Convenci-me
de que para Richard Carey, em certos momentos, a coisa mais
natural a fazer seria golpear com toda a força o belo rosto que o
enfeitiçara.
“Durante o tempo todo, algo me dizia que o assassinato de
Louise Leidner era um crime passionnel. No sr. Carey, encontrei
o assassino ideal para esse tipo de crime.“Resta outro candidato para o título de assassino: o padre
Lavigny. Logo tive minha atenção atraída ao bom padre devido
às discrepâncias entre sua descrição do estranho que espiava
pela janela e a fornecida pela enfermeira Leatheran. Em geral,
todos os relatos fornecidos por testemunhas diferentes contêm
certas discrepâncias, mas nesse caso elas eram absolutamente
gritantes. Além disso, o padre Lavigny insistia numa
característica específica (estrabismo) que facilitaria bastante a
identificação.
“Sem demora ficou claro que, enquanto a descrição da
enfermeira Leatheran era substancialmente exata, a do padre
Lavigny destoava em tudo. A impressão que se tinha era que o
padre Lavigny tentava nos ludibriar de modo intencional... como
se ele não quisesse que o homem fosse capturado.
“Mas, nesse caso, ele devia saber algo sobre essa singular
pessoa. Ele havia sido visto conversando com o homem, mas
tínhamos apenas sua palavra como testemunho do conteúdo da
conversa.
“O que o iraquiano fazia quando a enfermeira Leatheran e a
sra. Leidner o avistaram? Tentava espiar pela janela... a janela da
sra. Leidner, elas pensaram, mas me dei conta ao ir até o local
onde elas estavam, que poderia igualmente ter sido a janela do
depósito de antiguidades.
“Na noite seguinte, um alarme soou. Havia um intruso no
depósito de antiguidades. No entanto, não havia evidência de
algo roubado. Para mim, o ponto curioso é que quando o dr.
Leidner chegou ao local, descobriu que o padre Lavigny já
estava lá. O padre Lavigny conta que avistou uma luz. Mas de
novo só temos a palavra dele para nos basearmos.
“O padre Lavigny começou a despertar a minhacuriosidade. Durante as investigações, sempre quando insinuei
que ele poderia ser Frederick Bosner, o dr. Leidner desdenhou a
insinuação. Afirma que o padre Lavigny é um profissional
renomado. Faço a suposição de que Frederick Bosner, que teve
quase vinte anos para construir uma carreira usando novo nome,
a esta altura podia muito bem ser um profissional renomado! Em
todo o caso, não acho que nesse meio-tempo ele tenha se
dedicado a uma congregação religiosa. Uma solução bem mais
simples se desvela.
“Alguém na expedição conhecia pessoalmente o padre
Lavigny antes de sua vinda? Ao que parece, não. Por que, então,
ele não podia ser alguém se fazendo passar pelo bom padre?
Descobri que um telegrama tinha sido enviado a Cartago em
razão do repentino adoecimento do dr. Byrd, que acompanharia
a expedição. O que pode ser mais fácil do que interceptar um
telegrama? Quanto ao trabalho, não havia outro epigrafista ligado
à expedição. Com um conhecimento superficial, um homem
esperto poderia iludir os demais. Até o momento, poucas
tábulas e inscrições haviam aparecido, e fiquei sabendo que as
manifestações do padre Lavigny sobre o significado das frases
inscritas despertavam certa estranheza.
“Tudo indicava que o padre Lavigny era um impostor.
“Mas seria ele Frederick Bosner?
“De certo modo, as coisas não pareciam se moldar dessa
forma. A verdade parecia pender a uma direção bem diferente.
“Tive uma longa conversa com o padre Lavigny. Sou
católico praticante e conheço muitos padres e membros de
congregações religiosas. O padre Lavigny parecia não se encaixar
no papel. Mas, por outro lado, ele me parecia muito familiar
numa habilidade bastante distinta. Com frequência eu haviaencontrado sujeitos desse tipo... mas não eram membros de
congregações religiosas. Longe disso!
“Comecei a enviar telegramas.
“E então, de modo involuntário, a enfermeira Leatheran me
forneceu uma pista valiosa. Examinávamos os ornamentos de
ouro no depósito de antiguidades quando ela mencionou um
vestígio de cera grudado à taça de ouro. Eu pergunto: ‘Cera?’. O
padre Lavigny repete, ‘Cera?’, numa entonação que disse tudo!
Soube num átimo exatamente o que ele fazia ali.”
Poirot fez uma pausa e logo se dirigiu diretamente ao dr.
Leidner.
– Sinto lhe informar, monsieur, que a taça de ouro, a adaga
de ouro, os ornamentos de cabelo e vários outros itens no
depósito de antiguidades não são os artigos autênticos
encontrados pela expedição. São engenhosas cópias
galvanotípicas. O padre Lavigny é, acabo de saber por esta
última resposta a meus telegramas, ninguém menos do que Raoul
Menier, um dos ladrões mais talentosos conhecidos pela polícia
francesa. Especialista em roubar objets d’art de museus e coisas
do tipo. Seu cúmplice é o meio-turco Ali Yusuf, um primoroso
ourives. A primeira notícia que tivemos de Menier foi quando se
revelou que certos artefatos no Louvre não eram genuínos. Em
todas as vezes, se descobriu que um arqueólogo famoso não
previamente conhecido de vista pelo diretor havia manuseado os
artigos falsos ao fazer uma recente visita ao Louvre. Ao serem
interrogados, todos esses eminentes cavalheiros negaram ter
visitado o Louvre nas ocasiões declaradas!
“Fiquei sabendo que Menier planejava em Túnis roubar o
acervo dos Santos Padres quando o seu telegrama chegou. O
padre Lavigny, mal de saúde, foi obrigado a recusar, mas Menierdeu um jeito de interceptar o telegrama e trocar por um de
aceitação. Sentiu-se seguro ao fazer isso. Mesmo se os monges
lessem em algum jornal (por si só uma coisa improvável) que o
padre Lavigny estava no Iraque, eles só iam pensar que os
jornais tinham publicado uma informação equivocada, como
acontece com tanta frequência.
“Menier e o cúmplice chegam. O último é visto fazendo o
reconhecimento externo do depósito de antiguidades. O plano é
o padre Lavigny fazer moldes de cera. Então Ali produz cópias
perfeitas. Sempre existem certos colecionadores dispostos a
pagar um bom preço por antiguidades genuínas sem fazer
perguntas embaraçosas. O padre Lavigny fará a substituição dos
artigos genuínos pelos falsos... de preferência à noite.
“E sem dúvida é isso que ele está fazendo quando a sra.
Leidner o escuta e dá o alarme. O que ele pode fazer? Rápido
inventa a história de ter enxergado uma luz no depósito de
antiguidades.
“Aquilo ‘colou’, como se diz, muito bem. Mas a sra.
Leidner não era boba. Deve ter lembrado do vestígio de cera que
havia notado e tirou suas conclusões. Se descobriu tudo, então o
que ia fazer? Não seria dans son caractère cruzar os braços e
divertir-se fazendo insinuações para deixar o padre Lavigny
constrangido? Vai deixá-lo saber que ela suspeita... mas não que
sabe. É, talvez, um jogo perigoso, mas ela gosta de jogos
perigosos.
“Mas talvez ela tenha prolongado o jogo demais. O padre
Lavigny vislumbra a verdade e ataca antes de ela se dar conta das
intenções dele.
“Padre Lavigny é Raoul Menier... um ladrão. Seria
também... um assassino?”Poirot caminhou pela sala. Tirou um lenço do bolso,
enxugou a testa e prosseguiu:
– Essa era minha posição hoje de manhã. Existiam oito
possibilidades, e não sabia qual delas era a correta. Eu ainda não
sabia quem era o assassino.
“Mas o assassinato é um hábito. O homem ou a mulher que
mata uma vez vai matar de novo.
“E, pelo segundo assassinato, o homicida foi entregue em
minhas mãos.
“Durante todo o tempo, algo me dizia que uma das pessoas
do grupo talvez tivesse guardado informações... informações que
incriminariam o assassino.
“Se fosse assim, essa pessoa corria perigo.
“Minha apreensão recaía mais na enfermeira Leatheran,
dona de personalidade dinâmica e intelecto vivo e curioso. Temia
que descobrisse mais do que seria seguro para ela saber.
“Como é do conhecimento de todos, um segundo
assassinato aconteceu. Mas a vítima não foi a enfermeira
Leatheran... e sim a srta. Johnson.
“Aprecio a ideia de que teria alcançado a solução certa de
qualquer modo por puro raciocínio, mas com certeza o
assassinato da srta. Johnson me ajudou a descobrir a verdade
mais rápido.
“Para começo de conversa, havia um suspeito a menos (a
própria srta. Johnson), pois nem por um instante considerei a
tese de suicídio.
“Agora vamos examinar os fatos desse segundo assassinato.
“Fato número um: na tarde de domingo, a enfermeira
Leatheran encontra a srta. Johnson em prantos. Naquela mesma
tarde, a srta. Johnson queima o fragmento de uma carta que a
enfermeira acredita ser escrita com a mesma letra das cartas
anônimas.“Fato número dois: no entardecer antes de sua morte, a srta.
Johnson é encontrada estática no terraço pela enfermeira
Leatheran, num estado de horror incrédulo. Quando a enfermeira
pergunta o motivo, ela diz: ‘Descobri como alguém poderia
entrar no pátio sem ninguém perceber’. Não fala mais nada. O
padre Lavigny está cruzando o pátio, e o sr. Reiter encontra-se
na porta do ateliê.
“Fato número três: a srta. Johnson é encontrada
agonizando. As únicas palavras que consegue articular são ‘a
janela... a janela...’.
“Esses são os fatos. Eis os problemas com os quais nos
deparamos:
“Qual é a verdade sobre as cartas?
“O que a srta. Johnson viu do terraço?
“O que ela quis dizer com ‘a janela... a janela...’?
“Eh bien, vamos pegar o segundo problema como o de
solução mais fácil. Subi com a enfermeira Leatheran e fiquei na
posição exata que a srta. Johnson estava. Dali, ela podia ver o
pátio, o arco e o lado norte do prédio, além de dois membros da
expedição. Teriam aquelas palavras algo a ver com o sr. Reiter ou
com o padre Lavigny?
“Quase de imediato uma possível explicação lampejou em
meu cérebro. Se um intruso viesse de fora só poderia fazê-lo
disfarçado. E só havia uma pessoa cuja aparência geral se
prestaria a uma representação dessas. Padre Lavigny! De chapéu
colonial, óculos escuros, barba negra e uma comprida vestimenta
de lã, típica dos monges, um estranho poderia passar sem que os
empregados se dessem conta de que havia entrado.
“Era isso que a srta. Johnson queria dizer? Ou ela havia ido
mais longe? Teria percebido que toda a personalidade de padre
Lavigny era um disfarce? Que ele não era quem fingia ser?
“Com as informações de que dispunha sobre o padreLavigny, inclinei-me a declarar o mistério resolvido. Raoul
Menier era o assassino. Tinha matado a sra. Leidner para
silenciá-la antes que ela o entregasse à polícia. Agora outra
pessoa demonstra que penetrou o seu segredo. Ela, também,
deve ser eliminada.
“E, assim, tudo se explica! O segundo assassinato. A fuga
do padre Lavigny... sem vestimenta e sem barba. (Ele e o
comparsa sem dúvida agora atravessam com rapidez a Síria
portando irrepreensíveis passaportes, na pele de dois caixeiros-
viajantes.) A ação de colocar o moinho de mão manchado de
sangue embaixo da cama da srta. Johnson.
“Como eu disse, estava quase satisfeito... mas não
plenamente. Pois a solução perfeita deve explicar tudo... e essa
não explicava.
“Não explicava, por exemplo, por que a srta. Johnson disse
‘a janela’ quando morria. Não explicava o acesso de choro por
causa da carta. Não explicava sua atitude no terraço... o horror
incrédulo e a recusa a contar à enfermeira Leatheran o que afinal
ela agora suspeitava ou sabia.
“Era uma solução que se encaixava com os fatos externos,
mas que não satisfazia as exigências psicológicas.
“E então, enquanto recapitulava no terraço esses três
pontos: as cartas, o terraço e a janela, eu vi... exatamente como a
srta. Johnson tinha visto!
“E desta vez o que vi explicava tudo!”
VOCÊ ESTÁ LENDO
Agatha Christie - Morte na Mesopotâmia
Misterio / SuspensoA enfermeira Amy Leatheran é contratada para se juntar a uma expedição arqueológica no Iraque. Mas sua função ali tem bem pouco a ver com ruínas e artefatos: ela deve vigiar de perto a bela Louise Leidner, que está cada vez mais apavorada com a idei...